Um pequeno artigo de António Cluny que é uma pequena maravilha de exposição clara sobre o dever de reserva que impende sobre todos os profissionais do foro ( neste caso) e os impede de falar publicamente e fora do local próprio ( o processo e o tribunal) sobre os casos concretos em que intervêm.
A explicação desse dever atira para os magistrados em geral o ónus da consideração da possibilidade de discutir nos media os casos concretos que são alvo de comentário e notícia.
A razão do dever de reserva, aqui explicado, torna muito delicado que os magistrados possam comentar abertamente os casos processuais, mediáticos, para além da mera avaliação dos factos sem discussão, ou seja os que resultam das peças processuais já assentes ou que sirvam para explicar aos que não conhecem a razão de ser de determinadas decisões ou actos processuais.
O que me parece lamentável nos magistrados que comentam processos mediáticos é a atitude de "tomar partido" sem justificação plausível e fundamentada que por si só já entra bem dentro daquele dever de reserva.
Assim, parece-me que poderá subsistir uma possibilidade de intervenção sem violação desse dever, estritamente ( violando o estatuto profissional) ou em geral ( violando o sentido de reserva razoável e adequado, subjectivo neste caso): comentar apenas o que foi decidido tentando explicar o que foi decidido, sem acrescentar comentários pessoais sobre o sentido da decisão, mormente criticando a mesma, sem fundamento outro que não o mero palpite e desejo irreprimível de o fazer, por discordar da mesma.
Confesso que por aqui já incorri nesta pecha, mas isto é um blog e nada mais.
Quando ouço e vejo um Ricardo Sá Fernandes a comentar as decisões judiciais nos processos em que intervêm, sem qualquer sombra desse dever de reserva, ou qualquer pejo em fazê-lo, confesso que me indigna. RSF é useiro e vezeiro nisso e tanto critica a decisão do processo Casa Pia, considerando-a "das trêvas" como aplaude a decisão da Relação no caso Rui Pedro, achando que agora sim é que se fez justiça. Provavelmente se fosse advogado do arguido diria precisamente o contrário e com o mesmo à-vontade displicente.
A Ordem, essa, não faz nada...porque o próprio BOA se acha no direito de violar o dever sempre que quer e bem lhe apetece. Quase todas as semanas, no programa de tv em que participa com um magistrado da Relação de Lisboa que queria ser presidente do Benfica.
Jornal i de hoje:
1. A questão do dever de reserva dos profissionais do foro tem estado ultimamente na ordem do dia.
O dever de reserva está ontológica e deontologicamente associado à
legitimidade da intervenção de cada um dos protagonistas do enredo
judicial.
Permitir aos profissionais do foro que questionem, fora da lide
judicial, a estratégia e o andamento de um processo, permitir-lhes
discutir externamente o sentido das decisões nele tomadas, põe em causa a
legitimidade da justiça.
O dever de reserva significa, portanto, guardar para si - neste caso,
para a função que se exerce - um domínio, uma competência, uma
legitimidade, que, por tão exclusivas, têm, também elas, um espaço
adequado onde podem ser exercidas: o foro e, nele, o processo.
Violar ou prescindir do dever de reserva significa, então, prescindir desse domínio restrito.
2. O poder - e portanto também o poder judicial - necessitou, sempre, de uma iconografia própria para ser compreendido.
Hoje, em razão de uma maior proximidade dos cidadãos ao seu exercício, a
força das decisões judiciárias não pode basear-se, já e apenas, na pura
auctoritas da sentença ou na potestas do juiz.
A soberania popular e a autoridade da lei - lei votada em parlamento e
pelos seus representantes - ou, no exercício da justiça, o facto de esta
ser exercida constitucionalmente em nome do povo, implicam que este
queira e possa conhecer a razão de ser das decisões tomadas em seu nome.
A emergência da sociedade mediática e com ela a ampliação exponencial
do espectáculo que constitui, e sempre constituiu, o exercício da
justiça, fazem, todavia, ressaltar necessidades novas do ponto de vista
da explicação, e por isso da legitimação da acção dos tribunais e das
suas decisões.
Isso parece facilmente entendível por todos.
3. O que suscita dúvidas sérias é, por conseguinte, a possibilidade de o
pronunciamento exterior sobre o processo e as suas decisões, feito
justamente por quem internamente interveio na lide processual e
contribuiu para a formulação das mesmas.
O profissional do foro que escolher intervir num palco distinto daquele
em que tem legitimidade para actuar como tal arrisca deslegitimar o
próprio palco - a justiça - e deslegitimar a sua específica função
judiciária.
Tal escolha deslocaliza a lide, comportando, consequentemente, uma
óbvia desvalorização da sede institucional onde o julgamento deve
decorrer.
Ao assumir um protagonismo individual externo - despindo a beca ou a
toga, que validam e integram a sua actuação num sistema específico -
aquele que decidir, assim, intervir, rompe a cadeia e os preceitos
relacionais de comportamento que edificam um código comum, justificando a
profissão e, bem assim, a função processual que lhe está atribuída.
Rompidos, porém, os códigos de conduta específicos do foro e as vestes das profissões forenses, só a arbitrariedade reinará.
Não porque os códigos de conduta e códigos comunicacionais de outras
profissões sejam piores, mas porque são diferentes, por se destinarem a
outros fins.
As normas processuais e os comportamentos deontológicos dos que as
devem cumprir (ou fazer cumprir) visam o alcance de uma verdade que não
deve ser obtida a qualquer preço. Para a realização da justiça, elas
têm, pois, tanto valor como as próprias normas substantivas que a
definem.
O dever de reserva tem, por isso, de ser interpretado com novo rigor,
revalorizando-se, mesmo que em termos diferentes, ainda que
inevitavelmente adequados a uma sociedade comunicacional e de
espectáculo como a actual.
António Cluny- Jurista e presidente da MEDEL