quinta-feira, abril 23, 2015

Os argumentos fabulosos

 "Por outro lado, é fora de dúvida que a América- e poderia escrever o Ocidente-tem, pelo menos, idêntico interesse ao de Portugal, na salvação de África.
Ora a identidade de fins facilita a possibilidade de se chegar a acordo quanto aos meios, desde que aceitemos o diálogo e abandonemos essa espécie de iluminismo que quer fazer da política ultramarina portuguesa, até agora seguida e praticada, uma verdade absoluta"

" Como é que homens, indiscutivelmente inteligentes, chegaram a pensar ( e ainda porventura pensam) que podemos ser nós a ocupar o lugar de leaders do Ocidente, ditando a política e a estratégia geral que este deveria seguir, torna-se quase impossível entender. "- Manuel José Homem de Melo, in Portugal, o Ultramar e o Futuro, edição do autor, 1962.

É possível, juntando dois ingredientes fatais: a soberba e a temeridade. Quando se lhes junta a burriquice é a desgraça.

Quem ainda hoje defende que o Ultramar português deveria ser defendido à outrance, contra tudo e contra todos, desprezando alianças e ficando sózinhos no mundo, animados pelas palmadinhas nas costas de certos aliados que não mexiam uma palhinha, esperando para ver em que paravam as modas do tempo que passava, lembra-me certas fábulas.

E para responder em tom de fabulação, sirvo-me de La Fontaine e rapino daqui a lição

O Burro carregado de esponjas e o Burro carregado de Sal

Qual romano imperador,
Um pau por cetro levava
E a dois frisões orelhudos
Um burriqueiro guiava;
Um deles trazia esponjas,
E qual postilhão corria;
O outro de sal carregado
Os pés apenas mexia;
Um sem custo, outro com ele,
Montes e vales andaram,
Até que ao vau de um ribeiro
Ultimamente chegaram.
No que levava as esponjas
O burriqueiro montou,
E fez ir para diante
O que de sal carregou.
Ele o vau desconhecendo
Pregou consigo no pego,
Nadou; veio acima, e viu
Aliviado o carrego:
Porque o sal, de que era a carga,
Derreteu-se n'água entrando,
E o seu condutor, já leve,
Pôs-se em terra e foi trotando.
O camarada esponjeiro,
Que o viu tão leve sair,
Quis à sua imitação
Também no pego cair;

Ei-lo nas águas submerso,
Esponjas e burriqueiro,
Todos três bebendo à larga
Querem secar o ribeiro.
Tão pesadas se fizeram,
Por beberem sem cessar,
Que sucumbindo o jumento,
Não pôde as margens ganhar.
O homem lutava com a morte,
Té que um pastor lhe acudiu;
Mas o burro das esponjas
Foi ao fundo, e não surdiu.
 
E mais esta:

A um cavalo pouco amável
Certo burro acompanhava;
O cavalo no costado
Somente arreios levava.

Ao peso de rude carga
Quase o burro sucumbia;
E entre arquejos ao cavalo
Algum auxílio pedia.

"Não é descortês meu rogo
(Dizia ao seu companheiro):
Metade de minha carga
Ser-vos-á fardo ligeiro.

Temo estirar a canela
Antes que chegue à cidade;
De finar-me arrebentado
Livrai-me por piedade."

Seguia o corcel, fazendo
Ouvidos de mercador;
Té que viu morrer o burro
Sob o peso esmagador.

Arrependeu-se, já tarde,
Do recusado conforto,
Pois o colmaram da carga
E mais da pele do morto.


 E outra em tom de lamento:

Jactava-se de nobre
O burro de um prelado,
O sangue azul lembrando
Pelo materno lado.

Nascera de jumenta
De honrosas tradições,
Cujos heróicos feitos
Douraram seus brasões.

Porque fez isto e aquilo,
Cobrindo-se de glória,
Capaz se julga o burro
De figurar na história.

Um dia, em que o bispo
A um médico passou,
De ver-se rebaixado
O parvo se queixou.

Amarram-no a um moinho,
Quando em velhice cai;
Então do fidalgote
Vem à memória o pai.



Tudo isto tem a ver com esta notícia recente:

António Oliveira Salazar rejeitou uma proposta dos Estados Unidos para a independência das ex-colónias portuguesas a troco de mil milhões de dólares (782 milhões de euros), porque "Portugal não estava à venda", revela um ex-responsável norte-americano no seu livro "Engaging Africa: Washington and the Fall of Portugal's Colonial Empire".
Segundo o secretário de Estado adjunto para os Assuntos Africanos durante a administração Clinton, Witney Schneider, o ex-presidente do Conselho rejeitou a proposta americana em 1963, durante um encontro com um enviado da Casa Branca.

O livro detalha minuciosamente, com base em documentos oficiais e entrevistas com personalidades norte-americanas e portuguesas, as relações dos Estados Unidos com Portugal e com os movimentos independentistas das ex-colónias portuguesas, em particular Angola e Moçambique, desde o início dos anos 60 até à independência de Angola, em 1975.

De acordo com o autor, em 1962, o assistente do director adjunto de planeamento da CIA, Paul Sakwa, elaborou um plano denominado "Commonwealth Plan", que visava convencer as autoridades portuguesas a aceitar o que a CIA considerava ser a inevitabilidade da independência das colónias portuguesas.

O plano previa que Portugal concedesse a auto-determinação a Angola e Moçambique após um período de transição de oito anos. Enquanto isso, seria organizado um referendo nas duas colónias para se determinar que tipo de relacionamento seria mantido entre os dois territórios e Portugal após a independência.

Durante esse período, os dirigentes nacionalistas angolano Holden Roberto e moçambicano Eduardo Mondlane receberiam "o estatuto de consultores assalariados" e seriam preparados para a liderança dos novos países.

"Para ajudar Salazar a engolir a pílula amarga da descolonização, Sakwa propôs [ainda em 1962] que a NATO oferecesse a Portugal 500 milhões de dólares [391 milhões de euros] para modernizar a sua economia", escreve Schneider.

(...)
 O plano dos Estados Unidos esbarrou, contudo, na inflexibilidade de Salazar.

"Portugal não está a venda", foi a resposta do ditador português quando a proposta lhe foi apresentada, em Agosto de 1963 - ainda durante a administração Kennedy - pelo secretário de Estado adjunto norte-americano, George Ball.

Franco Nogueira considerou a proposta americana uma "idiotice

O autor diz ainda que o então ministro dos Negócios Estrangeiros português, Franco Nogueira, considerou a proposta americana uma "idiotice", porque revelava que Washington acreditava poder determinar ou garantir acontecimentos a longo prazo.

Segundo Nogueira, o plano dos Estados Unidos seria o primeiro passo para a inevitabilidade do caos nas colónias portuguesas em África.

Um dos aspectos mais curiosos do livro é a exactidão com que a CIA e vários diplomatas norte-americanos fazem, com muitos anos de antecedência e em documentos oficiais, a previsão da derrota militar portuguesa em África e o derrube da ditadura.

"A derrota militar portuguesa é uma conclusão inevitável se se permitir que a revolta em Angola ganhe volume e continuidade", adverte o documento da CIA que acompanhava a proposta inicial elaborada por Paul Sakwa, pouco depois do começo da guerra em Angola.

Sakwa questiona-se mesmo se os Estados Unidos poderiam permitir que Portugal "cometesse suicídio, arrastando os seus amigos na mesma via".

O então embaixador dos Estados Unidos em Lisboa, Burke Elbrick, considerado em Washington como um simpatizante das autoridades portuguesas, enviou um telegrama às autoridades norte-americanas em 1963 em que dizia que Portugal estava "debaixo da espada de Dâmocles", pois não era "nem suficientemente grande nem suficientemente rico" para fazer frente a uma guerra de guerrilha em três frentes.

As guerras em África poderiam significar "o fim do império lusitano" e do regime de Salazar, escreveu ainda o diplomata, advertindo que o fim do regime poderia resultar na subida ao poder de um Governo "consideravelmente mais esquerdista ou neutral".

(...)
Para o secretário de Estado adjunto de então, George Ball, Salazar elaborava a política externa de Portugal "como se o Infante D. Henrique, Vasco da Gama e Fernão de Magalhães fossem os seus conselheiros mais próximos".

Sempre gostaria de saber como é que Salazar e os salazaristas , se tivessem vivido as guerras peninsulares,  sobreviveriam ao espírito do "orgulhosamente sós"  agarrados às figuras de cera  dos antepassados, como conselheiros mais próximos.
Com certeza do mesmo modo que em Goa, Damão e Diu e com a memória do grande Albuquerque por perto para consolo restante.


Questuber! Mais um escândalo!