quinta-feira, abril 02, 2015

Atamancados há muitos...

Um juiz desembargador da Relação de Guimarães relatou um acórdão sobre uma questão jurídica. Essencialmente estava em causa saber se um organismo, uma "entidade", a saber "o Gabinete para os Meios de Comunicação Social pode ser admitido a intervir como assistente num processo em que se investiga a prática de crimes de fraude na obtenção de subsídio, em que a aprovação da candidatura ao subsídio foi feita pela presidência do referido Gabinete."

O acórdão é recente e pode ser lido aqui.

Um jornalista da Lusa foi catá-lo e topou algo que o motivou a uma notícia, por lhe parecer que havia homem a morder em cão.
A notícia já transbordou para o Observador e em breve será comentada nos areópagos mediáticos. Como tem os ingredientes para zurzir na magistratura vai ser pasto de chamas indignadas e normalmente ignorantes, como habitualmente.

O Observador relata assim:
Um juiz da Relação de Guimarães admitiu que “atamancou” o texto de um acórdão, alegando não ter tempo para ir para bibliotecas, nem lhe sobrar dinheiro para comprar um livro só para um processo.

O pedaço de rabo do cão que o jornalista lobrigou naquela decisão é pêlo do mesmo cão. A notícia está atamancada e o jornalista nem dá por isso, ao contrário do desembragador que explica bem aos colegas subscritores do acórdão o que pretende dizer e porque não foi mais longe no texto sucinto, mas claro e competente.

O que o juiz deixou em adenda, no projecto de acórdão que submeteu aos colegas subscritores ( e que poderão muito bem ter lido o texto que acabou por não ser citado, de um livro doutrinário) não é nada de especial e não devia dar qualquer notícia. Mas a palavra "atamancou" chamou a atenção do farejador e a solidariedade canina lá ajudou a bolsar a notícia. 

O texto da adenda que foi transcrita por lapso de quem o fez e não devia ter feito, ou seja, quem atamancou a colocação no site da dgsi,  é este: 

ADENDA AO PROJETO
O meu ponto é só este: quem representa o Estado na ação penal é o Ministério Público. O Estado não se pode constituir assistente. Ninguém pode ter dois representantes no mesmo processo, porventura a defenderem posições diferentes (como é o caso)
Tinha de escrever mais do que isto, por isso atamanquei o texto do projeto.
O Gabinete nunca afirma que tem personalidade jurídica. Nesta parte, aceita implicitamente os argumentos dos recorrentes. Identifica-se como “entidade”. Afirma é que “a personalidade jurídica jamais será condição para que alguma entidade se possa constituir assistente em processo penal” (não concordo).
Os recorrentes transcrevem doutrina no sentido de que as ações nos tribunais administrativos contra atos de “entidades” como o Gabinete devem ser propostas contra o Ministério respetivo ou contra Presidência do Conselho de Ministros, se o serviço for desta dependente (não contra a “entidade”) – art. 10 nº 2 do Código do Processo nos Tribunais Administrativos e Comentário a esse Código de Mário Aroso de Almeida e Carlos Fernandes Padilha, pags. 84 a 88 – esta obra dará como exemplo o Gabinete de Gestão Financeira do Ministério da Justiça, que também tem autonomia administrativa. Isto porque tais entidades “não se enquadram no conceito de entidades administrativas independentes”.
O recurso pareceu-me fundamentado, no sentido de que o Gabinete é “apenas” «Estado».
Não citei, porque só cito o que leio e com o atual volume de trabalho não tenho tempo para ir para bibliotecas, nem me sobra dinheiro para ir comprar um livro só para um processo.
Por isso tentei uma redação que “vai à volta” sem tocar em conceitos do Direito Administrativo que, de todo, não domino
.

Não há aqui qualquer menção a citação de "jurisprudência", como refere a notícia atamancada, mas sim doutrina vertida num comentário doutrinal  a um artigo de um código. A menção ao modo como se decidiu a questão não belisca em nada a validade intrínseca da mesma nem era a citação doutrinal que poria em causa essa decisão. A aprimoração do acórdão com a citação da parte doutrinal que "os recorrentes transcrevem" é assunto sobejante e embora quod abundant non nocet, dispensável.

Tal como era dispensável esta notícia atamancada e que nem percebe o teor do que leu. É disto que temos na Lusa e pelos vistos no Observador: vigilantes de cães mordidos que curam as mordeduras com pêlos dos mesmos cães.

2 comentários:

Floribundus disse...

se a merda tivesse valor
o rectângulo era um país rico

'és jornalista? nunca serás um ser humano'

BELIAL disse...

Porra pra sinceridade...

Ali há "surmenage".

A obscenidade do jornalismo televisivo