segunda-feira, julho 01, 2013

O fascismo semântico e o comunismo semiótico

No Portugal que surgiu poucos dias depois de 25 de Abril de 1974, apareceram  palavras novas que iriam marcar toda a linguagem futura no espaço mediático e corrente. Pegaram de estaca e foram todas plantadas pela Esquerda que as regou com o adubo revolucionário da ideologia, com novo composto semântico.
Salazarismo era palavra cuja novidade se repristinou, passando a associar-se a outra, quase coeva, mas estrangeira: fascismo.
Reaccionário era palavra igualmente bem demarcada no significado esquerdista e que foi adoptada pelos órfãos dos conceitos originais, filhos da nova semiótica.
Simplificando e com recurso à enciclopédia online,   no Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels afirmam que as classes médias - pequenos comerciantes, pequenos fabricantes, artesãos, camponeses - combatem a burguesia porque esta compromete sua existência como classes médias. Não são, pois, revolucionárias, mas conservadoras; mais ainda, reacionárias, pois pretendem fazer girar para trás a roda da história..".
Nesse sentido, as religiões são às vezes qualificadas como reaccionárias. Isto decorre, em parte, da oposição desses últimos a filósofos religiosos como Louis de Bonald, Joseph de Maistre e François-René de Chateaubriand, e em parte do que Karl Popper chamou de crença progressista (identificada como historicista) no carácter manifesto da verdade, que não conduz à construção do conhecimento mas à procura dos obstáculos à manifestação da verdade. Ao se identificar a religião como geradora de preconceitos, procura-se abolir a religião. "Analisar, afastar esse emaranhado de forças e tendências conflitantes e conseguir penetração em suas raízes, atingindo as forças de impulsão universal e as leis de transformação social – essa a tarefa das Ciências Sociais, tal como a vê o historicismo." 2

Esta classificação esquerdista determinou o paradigma, a bitola linguística a partir da qual todos os escritos se desenvolveriam nas décadas seguintes e entrou na linguagem comum. 
Fascismo era um pouco mais complexo de definir, como já se viu por um artigo num postal aqui atrasado. Para a doutrina geral fascismo implicava uma série de características que Portugal não tinha, em 1974.   "O fascismo vê a violência política, a guerra, e o imperialismo como meios para alcançar o rejuvenescimento nacional  e afirma que as nações e raças consideradas superiores devem obter espaço deslocando aqueles considerados fracos ou inferiores." Mas não só: " Os Fascistas procuravam unificar sua nação através de um estado totalitário que promove a mobilização em massa da comunidade nacional confiando em um partido de vanguarda para iniciar uma revolução e organizar a nação em princípios fascistas."

Tudo isto vem agora na Wikipedia e há livros e livros escritos sobre o assunto. Em 1974, em Portugal, não havia tantos assim, mas o PCP já conhecia toda a teoria que lhe permitiu introduzir essas palavras no léxico corrente, com o significado próprio, semanticamente adaptado. 
Bastou associar salazarismo ( ou caetanismo, termo que nunca utilizam porque sabem bem porquê...) a fascismo para termos a noção precisa do conceito em que o anterior regime passou a ser considerado.
O Portugal de 1974 não era fascista, mas passou a ser por imposição da Esquerda. E deu jeito a muito boa gente que passou a vestir uma casaca que não lhe servia escondendo as vergonhas do passado para refazerem a vidinha de sempre.

Um certo João Medina, que em tempos ( 2006) escreveu um livro sobre "Portuguesismo(s)" a fim de encontrar a "identidade nacional" (que só se revela a quem a conhece...) não caiu logo na tentação de reproduzir a novilíngua comunista no esquerdista O Jornal, onde escrevia crónicas singulares sobre a simbologia salazarista.
Em 9 de Janeiro de 1976 publicava-se esta sobre uma antiga e percursora organização,  que mostrava a raiz da Mocidade Portuguesa. "Raça", "antimarxismo", "antiliberalismo", "ao serviço da nação" eram expressões usadas nessa época,  no Portugal de 1934 que Salazar herdara em 1926   e ainda em reconstrução do descalabro republicano, maçónico e jacobino que nos atirou para a bancarrota moral e financeira.

Em 28 de Maio de 1976, cinquenta anos depois da tomada do poder pelos militares do que viria a ser o Estado Novo, Medina publicou no O Jornal este artigo em que procura mostrar o "fascismo" de Salazar,  por contraposição ao verdadeiro de Mussolini, encurralando-o num nacionalismo perverso e suspeito e numa prática dissimulada e consentânea com os mesmos princípios.


Todo esse esforço voluntarista era deitado por terra da realidade, em 9 de 7.1076, num outro artigo de página dupla,  ao apontar como características do salazarismo dos anos 30, os princípios do nacionalismo ( "que se pretendia não agressivo nem exclusivo") , da tradição, " e até na bondade, desconfiando do paganismo soreliano do fascismo e de outros garridos modelos estrangeiros."
Ao apontar Salazar como mais próximo do modelo democrata-cristão, ficavam à vista que as tentativas de um fascista de camisa azul, como Rolão Preto, não tinham a complacência do regime de Salazar, em 1934. Ou seja, antes da guerra mundial, do fascismo italiano se expandir e até o nazismo fazer furor na Alemanha conquistando o poder pela via democrática. Nem isso desarma o exército de militantes do fascismo luso como marca identitária do Estado Novo.

Com tudo isto, logo que chegou o 25 de Abril, a palavra "fascismo", dita em modos diversos, como fassismo, faxismo ou até fachismo, pelo próprio Cunhal, tomou conta da linguagem designadora do regime do Estado Novo de Salazar e até do tempo do Estado Social de Marcello Caetano, tudo confundindo e amalgamando como conviria a quem quisesse designar o Mal com uma palavra apenas.
Os socialistas de Soares e que na Europa eram social-democratas, adoptaram a designação e espalharam a boa nova: Portugal fora um regime fascista e fora libertado da terrível ditadura fascista que instaurou a democracia ( que Cunhal recusava poder ser parlamentar, mas teve que engolir como sapo vivo) e os reaccionários passaram a ser combatidos como adeptos do fascismo, relegados para a giena histórica de onde nunca mais regressaram.

Em 9 de Abril de 1976, um certo Eduardo Lourenço, professor emigrado no Sul da França, escrevia artigos no O Jornal ( e na revista Opção) e um deles apareceu em parelha com outro de um intelectual da "capela do Rato", João Bénard da Costa, já contaminado pelos vírus linguístico que entretanto se espalhara pior que o ébola.

Ambos reflectem o novo fenómeno mediático de então: a primitiva versão do "não apaguem a memória", a que pretendia assegurar a existência de um fenómeno avisando que a sua inexistência era um mito.



Eduardo Lourenço aproveitou este escrito e mais alguns para coligir num livro que intitulou "O fascismo nunca existiu", num efeito seguro de afirmação indiscutível pelo absurdo.
 
E no entanto, a leitura do que Eduardo Lourenço escreveu em comparação com o que Medina escrevia deveria ser suficiente para a "desconstrução" e para a análise estruturalista daquela invenção comunista.

O fascismo que aqueles asseguram ter existido em Portugal assoma e identifica-se com fenómenos que se reproduziram noutros sistemas, mormente no comunista, sem que tal lhes provoque o mínimo prurido ideológico ou de simples coerência de inteligência plana.

O fascismo para estes intelectuais que marcaram a linguagem corrente é "um cancro omnipresente" e para o definir patologicamente Lourenço chega a estes paroxismos no diagnóstico: "É preciso lembrar que o povo português, em largas camadas da população, não tomou nem podia tomar parte no processo político nacional e que essa substancial possibilidade ( que não foi criada, herdada ou cultivada  pelo regime) é o lastro mesmo de toda a espécie de fascismo?"  [...] "o fascismo estava em toda a parte, mas só possuía essa evidência aos olhos dos que o promoviam com consciência disso ( o escol fascista que foi numeroso e eficiente) e aos da oposição democrática consciente que combatia."
Portanto, um panfascismo nacional, espelhado na ausência de democracia pluri-partidária. Onde se encontra igual? É preciso dizer?
Para além dessa característica identitária do monstro, outras se lhe colam, como apêndices à vontade do freguês Bénard da Costa e outros. Qualquer sinal de violência do Estado é..."fascista". Qualquer exemplo de repressão legal torna-se "fascista". Qualquer emergência de imposição do Estado é naturalmente "fascista". Tudo isso era o Estado Novo e portanto era...fascista.

 Logo em 25 de Abril de 1974, porém,  foi derrubado o fascismo que deixou de existir.
O "fascismo" passou então a ser designado como a palavra-passe para nomear o Mal. Por isso mesmo, fenómenos como a repressão política, a impossibilidade de reunião ou associação, a existência de censura, eram sinais inequívocos dos tentáculos do monstro que mostrava a verdadeira natureza em modo mais subtil, como agora lembram os Rosas&Pereira, através da "política do espírito", do "sonho multifacetado do Império" e da prosaica polícia de choque.

Ocioso será comparar os lugares onde tais fenómenos se reproduziam com violência maior e mais significativa, como a RDA e os países de Leste em geral, com horrores semelhantes, massificados e despidos de preconceitos,  denunciados já nessa altura por muitos autores e testemunhos e que nunca encontraram por cá o mesmo género de repulsa que o fascismo caseiro que se habituaram a cultivar como ódio de estimação que os alimenta mediaticamente.
Este fenómeno é que se torna extraordinário.
E evidentemente que essas manifestações tipicamente fascistas acabaram de vez em 25 de Abril de 1974. Como escrevia então o Expresso, foram "irradicadas". 

Os direitos humanos e o direito a não se ser achincalhado gratuitamente e com pretextos "fascistas" também foram restabelecidos, em 1975, pelos comités de vigilância popular...



E a tolerância democrática tinha limites...naturalmente. Um leitor de O Jornal de 10 2 78 alvitrava uma sugestão para o destino da estátua decapitada de Salazar, na sua terra: "mandá-la para o Tarrafal". Aposto que a sugestão democrática provocou muitos risos alvares.





Questuber! Mais um escândalo!