Esta notícia: "Militares e juízes fora das novas regras da Função Pública" escandaliza alguns comentadores, sendo a ideia essencial do "escândalo" a de "tratar de maneira diferente funções nucleares do Estado das outras."
O verdadeiro escândalo é ver pessoas com formação superior sem perceberem o que são as tais "funções nucleares do Estado" ou a natureza das funções do Estado ou a razão da diferenciação das funções do Estado ou ainda outras variáveis que devem ser atendidas por quem pretenda discutir estas matérias, para além da mera demagogia.
Sem querer entrar na explicação simplista sobre a razão do "escândalo" que aparentemente reside na iniquidade, ou ausência de egualitarismo, revelando tendências esquerdistas em quem se apresenta como liberal e sem pruridos ideológicos quanto às desigualdades, a questão merece ponderação para além desse aspecto duvidoso.
Porque é que os militares e os juízes não devem ser funcionários públicos equiparados ao regime geral, digamos assim? É esta a verdadeira questão e para a entender não basta ter umas ideias gerais sobre o Estado, mas ter ideias assentes sobre as funções do mesmo Estado. Quem as pretende reduzir ao mínimo, como o liberalismo defende, ainda mais razões terá para perceber a distinção.
Assim: o que é um funcionário público? Não é fácil de definir concretamente e com precisão o conceito. Não era dantes, no tempo de Marcello Caetano e continua a não ser agora, com as mutações legislativas ocorridas. Porém, essencialmente não anda muito longe disto: alguém integrado numa actividade ao serviço de uma pessoa colectiva de direito público que é regida por um regime específico, mais ou menos distinto do direito laboral comum ( a definição é de Gomes Canotilho e Vital Moreira, na sua Constituição Anotada, de 1993). Como se tem visto, a mutação legislativa sobre a vinculação ao direito laboral comum próximo do privado, tende a esbater o conceito, sobrando regras específicas sobre o Estatuto do funcionalismo. E não deve confundir-se os "trabalhadores da função pública" com outros trabalhadores do Estado, mormente os que ocupam cargos públicos. Ou outros agentes do Estado, como, exactamente, os militares, com categoria de funcionários do Estado sujeitos a regime especial que inclui uma séria restrição de direitos, decorrentes da lei e da concepção moderna do Estado. Daí a diferença, para quem não queira ou não saiba entender.
Marcello Caetano, no seu manual de Direito Administrativo ( do tempo do fassismo, mas não há outro melhor, ainda hoje, e que é aproveitado pelos antifassistas encartados sem qualquer pejo) diferenciava os tipos de actividades do Estado em razão da matéria de cada um. Distinguia logo os jurídicos dos não jurídicos. E entre aqueles a função legislativa e executiva; entre estes, a função política e a técnica.
Para Marcello Caetano governar era " a actividade dos órgãos do Estado cujo objecto directo e imediato é a conservação da sociedade política e a definição e prossecução do interesse geral mediante a livre escolha dos rumos e soluções considerados preferíveis."- Manual de Direito Administrativo, tomo I, 10ª edição, Livraria Almedina, 1984 ( revista e actualizada pelo Prof. Doutor Diogo Freitas do Amaral).
E o Estado, para Marcello Caetano, podia ser entendido em sentido lato ou restrito: uma comunidade em determinado território que prossegue com independência e através de órgãos constituídos por sua vontade a realização de ideias e interesses próprios, sendo pessoa colectiva de Direito Internacional; ou uma pessoa colectiva de direito público interno e que no seio daquela comunidade tem o Governo por órgão.
Esta distinção é fundamental para entender que o Estado em si mesmo e como pessoa colectiva da Administração, não é soberano, ou seja, titular de um poder superlativo, incondicionado e independente. Goza apenas de uma autoridade derivada da soberania- a autoridade pública- regulada pela lei ( é esta a noção de Marcello Caetano, válida ainda hoje).
E o que é que isto quer dizer? Simplesmente, o ponto principal: quando há conflito de interesses entre privados ou entre privados e público, quem decide? E como decide?
Marcello Caetano diz outra vez: o órgão do Estado executor da lei, mesmo no seio da Administração, tem de actuar com perfeita imparcialidade. E sempre que o conflito surja entre o Estado e os privados, mesmo aí os interesses do Estado devem ser representados por outra entidade que no caso é o Ministério Público, estatutariamente, ainda hoje, em maior ou menor grau ( o Ministério Público, há vinte anos ainda representava a CGD, nas acções em tribunal e não só. E ainda hoje representa as EP´s que lho solicitem).
Marcello Caetano diz ainda:" imparcialidade e passividade são, pois, as características da via jurisdicional da execução das leis."
E entra aqui a justificação principal para se considerarem os juízes como fora da alçada do funcionalismo público geral.
Aos juízes compete a função jurisdicional, exercida nos tribunais. Os juízes são os titulares desse órgão de soberania e que exercem quando estão no tribunal, a despachar processos, a prolatar sentenças e a fazer julgamentos em audiências públicas.
Retomando um antigo manual do tempo do "fassismo" e que bem falta faz nos tempos de hoje - o meu manual de Organização Política e Administrativa da Nação do 6º e 7º ano liceal, correspondente ao 10º ano de hoje- as prerrogativas e imunidades dos juizes, de acordo com a Constituição de 1933 e o então Estatuto Judiciário, regras que se mantiveram nos dias de hoje, porque fundamentais do Estado de Direito, são:
independência- exercício da função de julgar segundo a lei, sem sujeição a ordens ou instruções ( o MºPº também tem esta característica embora mitigada pela hierarquia);
Irresponsabilidade- não respondem pelos seus julgamentos, salvas as excepções que a lei consignar. Tal garantia destina-se a salvaguardar quem demanda justiça, mais que os próprios magistrados, porque quem tem medo de ser castigado pelo que decide, decidirá sem independência e sem verdadeira autonomia e tenderá a beneficiar o mais forte. Este princípio é fundamental e tem sido ultimamente vilipendiado, até pelos conselhos superiores dos magistrados.
Inamovibilidade- a sua nomeação é vitalícia e não podem ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos senão nos termos fixados na lei, como sejam os estatutos. Esta característica é comum a ambas as magistraturas, a dos juízes e a do MºPº. As razões são as mesmas das anteriores.
E há mais: dedicação exclusiva. Os juízes nada mais podem fazer do que trabalhar em processos. Os que não o fazem, não exercem a função jurisdicional, mesmo que estejam em cargos públicos e recebam pela sua função, por direito de opção.
Daí que a restrição a este tipo de funções devesse ser mais apertada do que o tem sido. Há demasiados juízes a exercer fora da profissão.
Portanto e resumindo: os juízes não podem ser funcionários públicos tout court como alguns pretendem em nome de um princípio de igualdade balofo.
Se o podem ser em termos de remuneração, de progressão na carreira e em regulamentação administrativa de férias feriados e faltas, nunca o poderão ser noutras matérias como a responsabilidade, a mobilidade ou a independência.
E tal deveria ser óbvio para quem emite opiniões...e dantes, os alunos do 6º ano liceal tinham obrigação de saber. Se não...chumbavam.