terça-feira, outubro 24, 2017

Este moralismo ignorante e hipócrita é filho dilecto do jacobinismo

A propósito do acórdão da Relação do Porto sobre um caso de Felgueiras a leitura dos jornais de hoje é exemplar do modo como os jornalistas em geral tratam os assuntos, neste caso judiciários: pela rama, sem lerem as decisões, pelo sentimento de maria vai com as outras se for para onde interessa, etc etc.

O acórdão tem 22 páginas e é fácil de ler e compreender. Pois nem assim adiantou fosse o que fosse para que a opinião pública se confundisse com uma opinião publicada em modo jacobino, num ataque descabelado e eivado de um subjectivismo amplificado em ideias feitas.

Todos os jornais que li- Público, Correio da Manhã, i, Diário de Notícias e Jornal de Notícias- encarreiram  ao som flautista de um panurgo mediático. Carneiros como parecem ser, assim se comportam quando é o caso, e neste caso é assim.

Nem uma voz, uma única se levantou para defender publicamente a decisão dos juizes desembargadores,   ou pelo menos tentar explicar a decisão que aliás foi conforme à de primeira instância e teve o acordo do magistrado do MºPº na Relação. Ou seja, pelo menos cinco magistrados concordaram com a decisão de suspender a execução de pena de prisão aplicada na instância local de Felgueiras.

Nem uma voz se ouviu a explicar em que condições podem e devem ser suspensas as penas de prisão. Nem uma única voz se ouviu a explicar que a generalidade dos tribunais, num caso com estes contornos, aliás expostos factualmente no acórdão e que podem ser lidos, aplicaria decisão idêntica se fossem a decidir.

Todas as vozes, mesmo as dos que não leram nem querem ler, se concentram em aspectos relativamente secundários e que se ligam à exposição de motivos pelos quais se entende que o adultério pode ser um acto que contextualiza a agressão praticada e que antigamente poderia mesmo excluir a punição do agressor.
Aliás, ao contrário do que se diz e escreve agora por aí, a decisão da Relação não despenalizou a agressão ou sequer diminuiu a graduação da penalização aplicada na primeira instância. Apenas tentou explicar, de modo canhestro pelo que agora se pode ler e ver nas reacções ainda mais bisonhas dos komentadores do costume, qual a evolução do entendimento acerca do fenómeno da violência no casal.
O apelo à Bíblia, particularmente ao Antigo Testamento é coisa arcaica, como lamentavelmente diz o CSM, a comentar o que não deveria comentar? Nem por isso se tal for apenas numa explicação de costumes que vêm de muito longe e de muitas latitudes.
Nem tal se afigura atentatório de qualquer princípio de laicidade do Estado, porque não é isso que está em causa.
Se o juiz em causa mencionasse o que acontece noutras religiões, ainda actuais, teria sido mais explícito e evitaria a fatwa que agora lhe lançam estes fariseus e publicanos do jornalismo luso e da komentadoria avulsa que bajula o poder político-ideológico que está. Assim...reina a hipocrisia e a manipulação que aparentemente tem um objectivo: deslegitimar o poder judicial através do ataque a uma decisão judicial polémica porque assim a apresentam, sem perceberem o alcance e  limite da mesma.

Se o juiz em causa, em vez de mencionar o Código Penal de 1886 em modo de exemplo para a pena do uxoricídio, mencionasse os artigos 401 a 404º do mesmo código que esteve em vigor até 1982, talvez fosse menos fustigado. Assim...reina a confusão e ignorância.

Portanto, aqui ficam tais artigos:



Nessa altura, até 1982 o adultério era um crime. E se praticado pela mulher, punido com pena de prisão maior, de dois a oito anos. Se praticado pelo marido, punido apenas com pena de multa e apenas também se tivesse "manceba teúda e manteúda na casa conjugal"...e por outro lado o crime da mulher dependia da vontade do marido enganado. Se este lhe perdoasse, deixava de subsistir o crime punido com prisão maior...

Estes conceitos foram válidos juridicamente até 1982 e não foi assim há tanto tempo. Evidentemente que estes artigos e penalidades foram perdendo o valor simbólico e real ao longo dos anos, mas não deixaram de exemplificar o modo relativizador com que o legislador olhava para o adultério.
No novo Código Penal de 1982, entrado em vigor em Janeiro de 1983, acabou-se com aquele crime mas criminalizou-se a omissão de assistência material à família ou a bigamia.

Os valores morais alteraram-se com o tempo? De algum modo, sim. O divórcio não era permitido facilmente antes de 1974 e depois a legislação foi evoluindo, até em 1977 se estabelecerem regras condizentes com a Constituição de 1976, relativas à igualdade dos cônjuges em matéria de direitos e obrigações. Um dos deveres importantes era o de fidelidade, a par da assistência e coabitação. De ambos os cônjuges.
Mas...quanto ao dever de fidelidade na prática existem diferenças relativamente à exigência que se opera relativamente ao homem ou à mulher, por muito que a lei diga que não existem.
E são essas circunstâncias concretas que se devem apurar sempre que surgem problemas deste teor. A questão é esta: na prática e na sociedade de hoje, em Portugal, o adultério da mulher é encarado pela sociedade em geral do mesmo modo que o adultério do homem? A lei não distingue, mas os comportamentos concretos devem distinguir-se porque a culpa é sempre individual e não é objectiva.

Julgo ter sido este o problema equacionado no caso concreto do acórdão e se a menção aos preceitos da Bíblia e do Código Penal de antanho são discutíveis, a essência não o será assim tanto.

Dizer que a evolução dos costumes não é assim tão rápida quanto a das leis é mero bom senso e fazer depender destas a alteração daqueles é simplesmente estultícia jacobina.

Se o juiz desembargador do Porto tivesse explicado um pouco melhor esta ideia que julgo ser a que transmitiu, talvez evitasse esta maré jacobina que se levantou de repente como um tsunami.

Ora leia-se:

No DN até uma santeira desta ladeira se associa ao jacobinismo:


A direcção do jornal da GlobalMedia do refastelado Proença, expõe assim a ignorância interpretativa:


Até no CM um leitor de livros que costumo ler, escreve asneiras avulsas:


O Público, esse, é o eido preferido desta gente que nos atola na intolerância sob a capa do progressimso:


Que fazer, como diria o comunista fossilizado, Lenine? Ora, uma de duas coisas: ou ignorar citações filosóficas e aterem-se os juízes aos factos e ao mecanismo processual de fundamentação das decisões, como fez a primeira instância de Felgueiras; no fundo fazer isto que aqui se ensina; ou então,  citar os autores preferidos desta jacobinagem ambiente. A Bíblia, nunca! O Corão? Talvez. O Talmude? Ainda melhor...

Habermas! Habermas!  Citem-no e terão excelente e muito bom e até citações destes palermas todos. E se nestas matérias citarem uma abécula como uma tal Maria Clara cujo apelido não digo, ainda melhor. Terão muito bom à primeira inspecção...

Para quem anda por aí a proclamar a laicidade do Estado, para atacar o juiz em causa, vale a pena transcrever o artigo da Constituição que é consagrado a essa matéria para ver se metem a viola no saco:

Artigo 41.º
Liberdade de consciência, de religião e de culto
 1. A liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável.
2. Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa.
3. Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser prejudicado por se recusar a responder.
4. As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.
5. É garantida a liberdade de ensino de qualquer religião praticado no âmbito da respectiva confissão, bem como a utilização de meios de comunicação social próprios para o prosseguimento das suas actividades.
6. É garantido o direito à objecção de consciência, nos termos da lei.

ADITAMENTO TRISTE:

Até mesmo os bispos portugueses sentiram necessidade em comentar o acórdão que não leram. Se tivessem lido não fariam estas tristes figuras.

De resto, o efeito jacobino está perfeitamente conseguido: perverter o sentido de uma decisão e virar a discussão para o que lhes interessa. Até a Igreja Católica caiu na ratoeira...

Questuber! Mais um escândalo!