A cripto-entrevista serve para muito pouco, encher papel e pouco mais. Mas pelo meio há duas revelações que dizem mais do juiz Piçarra do que outra coisa qualquer, mormente os assuntos de que fala. A jornalista questiona-o sobre o juiz Neto de Moura e o juiz Piçarra não se faz rogado e diz que os dois acórdãos em causa o deixaram "chocado e revoltado". E mais: que afinal a maior parte dos juízes não se revê naquela argumentação e que nem todos os juizes são machistas e misóginos. Ou seja, Neto de Moura, é.
Isto é triste e lamentável ao mais alto grau. Afinal percebe-se agora melhor ( e nisso a entrevista é reveladora e já valeu a pena, só por isso porque pouco mais tem) que o juiz Piçarra, quando votou a favor da sanção disciplinar ao juiz Neto de Moura, desempatando uma votação renhida, queria isso mesmo, como obteve. Depois, tanto choque e revolta só lhe deu para decidir mais uma vez, juntamente com o seu par, Belo Morgado, por uma...advertência, em vez da multa proposta pela turbamulta dos demais juízes em CSM.
Fico perplexo com estas declarações e pergunnto-me o que pensam delas os demais juízes que votaram pelo arquivamento do processo de inquérito àquele juiz. Pensam como ele? Que o juiz Neto de Moura é machista e misógino? E se pensam porque votaram pelo arquivamento? Não pensam como ele? E então que ficam a pensar deste Piçarra que veio de Coimbra onde passou quase todo o tempo a julgar causas cíveis e agora se afoita pelo crime adentro, palpitando soluções sobre assuntos em que há anos não labora? Até sobre os megaprocessos dá palpites e que é muito perigoso se aparecer uma nulidade a montante, etc etc. Isto é uma tristeza.
Tudo isto vem reforçar a ideia de que afinal os dois acórdãos daquele juiz são dignos de crítica e repúdio, como o fez a tal jornalista que desonrou Neto de Moura. Dupla tristeza.
Porque é que este Piçarra, por quem perdi todo o respeito profissional, não se cala e devolve o assunto a quem sabe mais que ele, resumindo-se ao seu conhecimento cível, como era o caso do antigo PGR Pinto Monteiro? Afinal, parecem da mesma laia...
Que cultural e formação, para além do Direito, tem este indivíduo? De onde vem o seu saber que parece moldado pelos cata-ventos mediáticos? Será dos que vê tv e gosta do que vê? Gostou provavelmente de ver o juiz Neto de Moura a ser achincalhado como um calhau com olhos...e aplaudiu a peça. Outro Noronha não será, que esse atrevia-se a falar no princípio kantiano do imperativo categórico, sem o conseguir explicar. Porém, é de estirpe parecida. Porque é que se escolhem estas abencerragens para o STJ? Sim, porquê?! Tantos tiros no pé de uma magistratura que parece desprovida de pensamento sólido nos princípios e valores. Não há mais ninguém para eleger e sobram sempre estes personagens menores de uma magistratura que devia ser exemplar? O Morgado, depois de escrever sobre a "teoria do granizo" elaborou sobre a "inteligência artificial" aplicada às decisões judiciais. Daqui a pouco mais de um mês contará com a votação dos colegas para o manter no posto em que está? Escolham o Lameira, porra! Sendo um mal menor, ficará melhor ao lado do Piçarra que é o que se vê: mais um "beirão honesto". Enfim.
Este juiz foi dos que se formou no CEJ, com Laborinho Lúcio, logo no início dos anos oitenta.
Talvez seja interessante colocar aqui novamente o que Laborinho dizia ainda há uns meses acerca da função de julgar e outras matérias, aliás comentado aqui, a propósito do seu redondo vocábulo.
Dizia assim Laborinho, sobre o exercício do poder judicial, no seu estilo muito próprio, arredondado ao mícron do politicamente correcto pós Maio-68:
"A justiça tem hoje um problema complicado para o qual também é necessário fazer perguntas - aqui não precisam ser muito fortes. Viemos de um tempo em que a justiça era respeitada porque todos confiavam nela por uma questão de fé. Ora a fé, sem estar com isto a fazer qualquer extrapolação para a fé de dimensão religiosa, em política assenta na ignorância, porque através do conhecimento o que se quer é racionalidade. Acontece que a justiça é respeitada porque se acreditava nela. Com o processo democrático, com a discussão pública das questões da justiça, a justiça começou a ser discutida pelo cidadão comum, cujo conhecimento é maior, mas está muito longe de ser o mínimo para poder ter uma racionalidade crítica. O que temos hoje é uma falta de fé em alguns aspectos e uma falta de conhecimento bastante para poder reconstruir a relação de confiança. Isto gera uma intervenção de certos sectores da comunicação social, que é legítima, e que levou àquilo a que se chama a justiça espectáculo ou a justiça dramática, em que, no fundo, se hipervalorizam os casos de justiça junto de uma opinião pública que está em casa sentada no sofá a fazer o lugar do juiz ou do Ministério Público.
E esse é um papel legítimo ou não?
A justiça tem de aprender a viver com isto, em vez de fazer o discurso do "nós não temos de dar satisfações a ninguém". A justiça tem de perceber que as pessoas estão interessadas, estão empenhadas e têm uma percepção. O que é fundamental é ter a noção de que a percepção da realidade é uma coisa e a realidade é outra. A certa altura tudo passa a acontecer como se nós tivéssemos de responder às tomadas de posição que vêm da percepção junto da opinião pública. Nesta medida é essencial que compreendamos várias regras; por exemplo, uma justiça não é melhor nem pior consoante condena ou absolve. Uma justiça que absolve é tão justa como uma justiça que condena. Por outro lado, e sei que isto é difícil de aceitar, mas seria intelectualmente desonesto se não o dissesse, a justiça, como a saúde, são actividades de risco, e nem sempre tudo corre bem. Há uma dimensão de erro que faz parte do próprio contrato social. Eu, como cidadão, quando transfiro para os tribunais, para o Estado, o poder de condenar ou de absolver, transfiro também a minha aceitação da margem de erro que pode acontecer. Isso não impede que os cidadãos critiquem a justiça e o modo como ela funciona, ou até denunciem as circunstâncias em que ocorrem eventuais erros. O que não se pode necessariamente fazer é extrapolar daí para colocar questões morais ou éticas sobre o funcionamento da justiça e dividir tudo entre bons e maus. Temos de nos habituar a crescer, a ser mais adultos nesta relação e compreender o espírito, não tendo de estar de acordo e tendo o direito de criticar. Veja o exemplo do tribunal de júri norte-americano, normalmente apresentado como exemplo de erros judiciários: condenações à morte de pessoas que mais tarde se verifica não terem praticado qualquer crime, etc. Nenhum americano põe em causa o tribunal de júri. O tribunal de júri faz parte da sua cultura, é uma instituição e é dos americanos, que não abdicam dela e não a colocam em causa. E, todavia, podíamos desenvolver críticas ao seu funcionamento.
Sabemos que as decisões que se tornam públicas são as mais escabrosas, as mais controversas, embora não deixem de ser reflexo dos juízes que temos. Mas já assisti a vários processos-crime económicos e foi confrangedor ver o Ministério Público. Pergunto-me se a preparação da acusação no Tribunal de Menores ou noutros será semelhante.
Precisamos de compreender que a realidade exterior modificou-se muito. Os tribunais têm de perceber como incorporar essa mudança nas suas atitudes, inclusivamente na construção das suas decisões. Não posso falar de casos concretos, mas nada me impede de dizer que como cidadão muitas vezes também fico um pouco perplexo com determinado tipo de fundamento de decisões. Agora, há um aspecto que julgo importante, e aqui os magistrados teriam de colaborar e, provavelmente, até a formação de magistrados teria de caminhar por aí. Há uma tendência para tornar a administração da justiça, a intervenção do magistrado, num compacto de técnica. Evidentemente que a técnica é decisiva e é fundamental que o magistrado seja competente tecnicamente, mas a competência do magistrado vai muito mais longe. Muitas vezes os magistrados, impecáveis do ponto de vista da aplicação da lei, esquecem-se de que aquela sentença é pública e que o público vai lê-la. E para o público seria importante que muita da realidade que não é levada ali lá estivesse, até com uma linguagem menos hermética, para perceber a história no seu todo, caso contrário não compreende a decisão. Talvez valha a pena repensar isto. Julgo que os casos se têm vindo a repetir e que esta é uma questão essencial e que faz parte da comunicação da justiça. Temos um pouco a ideia de que a comunicação da justiça é saber quem é a pessoa que pega no microfone e vai dizer o que se passou. É importante que isso seja feito, mas a comunicação, sabe melhor do que eu, resulta dos termos usados e da forma como são levados ao conhecimento do cidadão. Nesta matéria penso que temos um grande caminho a percorrer e não nos devemos ficar apenas por dizer que as pessoas não percebem nada disto e não vale a pena dar importância ao que elas dizem. Isto é não compreender a realidade e ficar cada vez mais afastado dos cidadãos.
A justiça tem de aprender a viver com isto, em vez de fazer o discurso do "nós não temos de dar satisfações a ninguém". A justiça tem de perceber que as pessoas estão interessadas, estão empenhadas e têm uma percepção. O que é fundamental é ter a noção de que a percepção da realidade é uma coisa e a realidade é outra. A certa altura tudo passa a acontecer como se nós tivéssemos de responder às tomadas de posição que vêm da percepção junto da opinião pública. Nesta medida é essencial que compreendamos várias regras; por exemplo, uma justiça não é melhor nem pior consoante condena ou absolve. Uma justiça que absolve é tão justa como uma justiça que condena. Por outro lado, e sei que isto é difícil de aceitar, mas seria intelectualmente desonesto se não o dissesse, a justiça, como a saúde, são actividades de risco, e nem sempre tudo corre bem. Há uma dimensão de erro que faz parte do próprio contrato social. Eu, como cidadão, quando transfiro para os tribunais, para o Estado, o poder de condenar ou de absolver, transfiro também a minha aceitação da margem de erro que pode acontecer. Isso não impede que os cidadãos critiquem a justiça e o modo como ela funciona, ou até denunciem as circunstâncias em que ocorrem eventuais erros. O que não se pode necessariamente fazer é extrapolar daí para colocar questões morais ou éticas sobre o funcionamento da justiça e dividir tudo entre bons e maus. Temos de nos habituar a crescer, a ser mais adultos nesta relação e compreender o espírito, não tendo de estar de acordo e tendo o direito de criticar. Veja o exemplo do tribunal de júri norte-americano, normalmente apresentado como exemplo de erros judiciários: condenações à morte de pessoas que mais tarde se verifica não terem praticado qualquer crime, etc. Nenhum americano põe em causa o tribunal de júri. O tribunal de júri faz parte da sua cultura, é uma instituição e é dos americanos, que não abdicam dela e não a colocam em causa. E, todavia, podíamos desenvolver críticas ao seu funcionamento.
Sabemos que as decisões que se tornam públicas são as mais escabrosas, as mais controversas, embora não deixem de ser reflexo dos juízes que temos. Mas já assisti a vários processos-crime económicos e foi confrangedor ver o Ministério Público. Pergunto-me se a preparação da acusação no Tribunal de Menores ou noutros será semelhante.
Precisamos de compreender que a realidade exterior modificou-se muito. Os tribunais têm de perceber como incorporar essa mudança nas suas atitudes, inclusivamente na construção das suas decisões. Não posso falar de casos concretos, mas nada me impede de dizer que como cidadão muitas vezes também fico um pouco perplexo com determinado tipo de fundamento de decisões. Agora, há um aspecto que julgo importante, e aqui os magistrados teriam de colaborar e, provavelmente, até a formação de magistrados teria de caminhar por aí. Há uma tendência para tornar a administração da justiça, a intervenção do magistrado, num compacto de técnica. Evidentemente que a técnica é decisiva e é fundamental que o magistrado seja competente tecnicamente, mas a competência do magistrado vai muito mais longe. Muitas vezes os magistrados, impecáveis do ponto de vista da aplicação da lei, esquecem-se de que aquela sentença é pública e que o público vai lê-la. E para o público seria importante que muita da realidade que não é levada ali lá estivesse, até com uma linguagem menos hermética, para perceber a história no seu todo, caso contrário não compreende a decisão. Talvez valha a pena repensar isto. Julgo que os casos se têm vindo a repetir e que esta é uma questão essencial e que faz parte da comunicação da justiça. Temos um pouco a ideia de que a comunicação da justiça é saber quem é a pessoa que pega no microfone e vai dizer o que se passou. É importante que isso seja feito, mas a comunicação, sabe melhor do que eu, resulta dos termos usados e da forma como são levados ao conhecimento do cidadão. Nesta matéria penso que temos um grande caminho a percorrer e não nos devemos ficar apenas por dizer que as pessoas não percebem nada disto e não vale a pena dar importância ao que elas dizem. Isto é não compreender a realidade e ficar cada vez mais afastado dos cidadãos.
Epá! Jornalismo de causas! Chegou o momento de entrevistar João Silva Miguel, actual director do CEJ. Para se ver o que pensa destes assuntos...
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