"Neste país só haverá condenações por corrupção quando corruptores e corrompidos se juntarem a uma só voz para reclamar a sua condenação. Ou seja, nunca mais. Se houve concursos simulados, falsificações, retornos de verbas, se tudo o que o tribunal verificou e deu como incontestável indiciava uma nebulosa de interesses violadores dos mais elementares princípios do interesse público, pouco importou. Na idílica visão de boa parte dos nossos magistrados, o pecado original nunca existiu e Fátima Felgueiras é disso o mais perfeito testemunho."
Esta passagem do editorial de Manuel Carvalho, no Público de hoje ( reproduzido na imagem supra e que se abre com um clique) , resume todo o problema e paradoxo da Justiça portuguesa: " Algures num texto de jurisprudência ou numa alínea de um código há sempre algo que desfoca a realidade e a envolve na intransponível opacidade da dúvida."
Ao deslocar a fonte da Injustiça, para os tribunais e os magistrados, maxime juízes, Manuel Carvalho está a colocar o dedo na ferida mais profunda e estranha de todo o sistema: o modo como se avaliam provas, indícios, testemunhos, lógica dedutiva, na convicção íntima de quem julga e decide. Pouca gente fala disto e do modo como se decide em Portugal, nos tribunais.
É absolutamente espantoso, como um julgamento que decorre há meses, com produção de prova à vista de todos, conduza a um resultado tão surreal que leva o comentador, em editorial a escrever que "o que se passou ontem em Felgueiras é por isso um testemunho da propensão para a irrealidade do formalismo."
E no entanto, o que se passou ontem em Felgueiras, é o retrato perfeito do sistema de justiça que temos, sempre que chega aos tribunais, lugar por excelência da produção de prova e aplicação do Direito com vista a fazer Justiça. É um retrato ubuesco, baconiano, distorcido e...real, terrivelmente real
Esta ideia de Justiça, tem uma ressonância inequívoda no sentimento geral da comunidade em nome da qual se aplica.
Muitos juízes, parecem esquecer facilmente este pressuposto básico, fundamental da sua actividade - administrar a Justiça em nome do povo- para a transformarem numa actividade formal, de jogos florais de Direito substantivo e processual. Os exemplos, recentes, são às dezenas, nos casos mediáticos. Nos anónimos, o fenómeno é idêntico e por vezes bem pior.
O Direito processual penal, tem como objectivo a concretização do Direito Penal que é o direito substantivo que define os ilícitos criminais, as penas aplicáveis e as circunstâncias em que se podem punir os agentes dos crimes. É um Direito público, no qual o Estado realiza a função jurisdicional, cujos agentes activos dessa função, são os tribunais e os juízes que os compôem.
No Direito Penal total que abrange o processo, as regras estão definidas, embora variem de precisão em restrição e de aclaração em modificação, ao longo dos anos.
No entanto, o essencial, está definido e assenta num objectivo consensual: a meta da verdade material, ou seja, a conquista da verdade do caso, pela exposição do mesmo em julgamento público.
Há um princípio básico, fundamental, nas regras processuais penais, para a aplicação da Justiça: o da verdade material.
Este princípio, consagrado explicitamente no artigo 340º do CPP, desde há muitos anos, reza simplesmente o seguinte, como princípio geral de produção de prova em julgamento:
1 - O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
2 - Se o tribunal considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação, dá disso conhecimento, com a antecedência possível, aos sujeitos processuais e fá-lo constar da acta.
Lendo este artigo, fica a perceber-se a filosofia fundamental do actual CPP: é no julgamento que se tiram teimas sobre os factos e as culpas. Por isso, todas as provas devem ser produzidas em julgamento, mesmo as que já foram, produzidas no Inquérito da investigação do MP e polícias. É no julgamento que se verifica a imediação, a presença dos acusados, perante as provas recolhidas, para confronto dos mesmos com esse acervo do corpo de delito
E no entanto, é neste panorama e nesta área fundamental, que se repercutem todas as incongruências e perplexidades do sistema jurídico-penal que temos.
O elenco de garantias generosamente concedidas pela mesma lei processual, aos acusados, perverte em muitos casos, o alcance da Justiça, por vários e ínvios caminhos.
Seja pela proibição de provas, cuja discussão é constante e sempre alvo de recursos dilatórios, decisões constitucionais e discussões doutrinárias, ad nauseam; seja pela restrição ao uso e apresentação de provas, obliterando aquele artigo sobre a verdade material, em proveito de outros que garantem direitos de defesa à outrance; seja pelo regular funcionamento do contraditório, entre testemunhos de acusação e defesa, a reunião dos elementos probatórios, em julgamento, muitas vezes assume aspectos kafkianos, no sentido de desprovidos de sentido de Justiça efectiva e real.
Os julgamentos penais, em Portugal, decorrem muitas vezes, num cenário surreal, como diz o editorialista do Público, em favor de um formalismo relevado e sobrevalorizado pelo julgador, que nessa altura se demarca da sua função essencial de descoberta da verdade, para se colocar num plano de comodismo da dúvida, mesmo a que atenta contra o senso comum e que a lei e os princípios não lhe autorizam, sob pena de denegação de justiça que é em si mesma, um crime. E no entanto, essa atitude de dúvida e de cepticismo, numa concepção atribulada de Justiça em prol da inocência presumida, não tem consideração pelo senso obrigatório de contribuir para dar a cada um aquilo que lhe pertence, mesmo que seja uma pena.
Alguns julgamentos de processos em que não há vítimas concretas, mas colectivas, como são os de corrupção, decorrem assim, num ambiente propício ao deletério, ao surreal e ao jogo processual, do formalismo mais acerbo, sempre em prejuízo da verdade material e em prol da dúvida metódica que muitos julgadores se revestem, à partida, como se não fizessem parte da comunidade, em nome da qual administram Justiça.
Torna-se incrível e factor de verdadeira perplexidade, incompreensível pela generalidade das pessoas, que os processos complexos, em que a acusação pública, muitas vezes sustentada ainda por uma pronúncia, relativa a vários crimes, algumas vezes com incidência em organizações criminosas, acabem em julgamento por absolvições, condenações simbólicas, depois de muita poda no objecto da acusação, redundando afinal em factor de descredibilização de todo um sistema jurídico-penal. Nem tudo o que ocorre numa sala de audiências, pode ser imputado aos acusadores, quando falha a prova dos crimes. Há algo a sindicar nestes fracassos correntes em que os julgadores aparecem sempre como invisuais da realidade circundante e conhecida de todos.
No caso de Flegueiras, como apontou o editorialista, estava lá tudo; quase tudo se comprovou no senso comum de quem assistiu; o MP pediu pena de prisão efectiva, de vários anos, relativamente a vários crimes, graves, incluindo corrupção.
Porém, ao fim de dezenas e dezenas de sessões, de produção de prova com vista a uma verdade material, contrariando princípios de concentração e celeridade processuais, atirados às malvas dos adiamentos e produção de provas inúteis, a acusada, sai, no final de contas, da sala de audiências, como se tivesse vencido uma batalha da sua vida, apesar de ter sido condenada em três crimes, das dezenas que lhe foram imputados, e ainda sujeitos a apreciação por via de recurso.
O que este julgamento releva, tal como outros ao longo destes últimos vinte anos de vigência do actual Código de Processo Penal, é algo manifestamente perverso e proclamado por muitas pessoas do povo e ainda de quem participa nesses julgamentos: "os poderosos nunca são condenados", é o sentimento repartido por todos, assente num juizo de impunidade garantida.
Esta ideia, pressupõe a injustiça, a iniquidade, a parcialidade. Por vezes, como neste caso, em desfavor de quem julga. Tudo a favor do descrédito do sistema que temos.
Ao longo dos últimos vinte anos, os exemplos são tão flagrantes e concretos que dificilmente alguém pode contestar essa asserção corrente: os poderosos safam-se sempre. De decisão em recurso e de recurso em confirmação ou negação, ficam sempre de fora da punição. E os processos duram anos e anos. E confirmam quase sempre essa ideia que já se implantou no sentimento da comunidade.
Para isto, para este resultado, para que precisamos de tribunais? Para mostrar que temos um poder judicial? É pouco, parece. Para julgar pindéricos e pilha-galinhas, bastaria uns juízes de paz.
Porquê isto? Porqué esta inconsequência constante e real? Talvez seja altura de procurar saber em concreto porquê.
Este escrito é apenas uma achega a tal desiderato, sendo certo que o problema é complexo e não deve cingir-se à produção de prova em julgamento e à decisão do tribunal propriamente dita, como o faz o editorialista do Público.
A meu ver, há mais para pôr na carta. E que se tornaria longa para um texto destes. Por isso, vai ser desdobrado, em futuras reflexões.
5 comentários:
Caro José
Eles acham, na minha humilde opinião que são "Poderosos"!
Quando a bomba lhes rebentar vão chorar e muito.
Estou sentada a assistir...
Vou blogando e lendo o que dizem, eles bem querem mas aqui não conseguem cortar-nos a palavra!
Os "poderosos" é um eufemismo, que abrange todos os que tem poder e também influência.
Os tribunais, com esta gente, tornam-se vulneráveis, não sei bem a quê.
É um fenomeno.
Por isso é que estou aqui conversando!
Vão-se queimar a eles próprios.
Vai ser um fenómeno,tipo aparição aos pastorinhos...
«Talvez seja altura de procurar saber em concreto porquê.»
Bem, isso é um mistério que perdura, pelo menos, desde os gloriosos tempos de El-Rei D. João IV, e que se aplica não apenas à Justiça como a todos os sectores fundamentais da governação deste torrãozinho complicado.
Já Pina Manique a ele se referia, em 1795:
“Exmo. Sr. Duque de Cadaval,
Se meu nascimento, embora humilde, mas tão digno e honrado como o da mais alta nobreza, me coloca em circunstância de V. Excia. me tratar por tu caguei para mim que nada valho. Se o alto cargo que exerço, de Corregedor da Justiça do Reino em Santarém, permite a V. Excia., Corregedor-Mor da Justiça do Reino, tratar-me acintosamente por tu, caguei para o cargo.
Mas, se nem uma nem outra coisa consente semelhante linguagem, peço a V. Excia. que me informe com brevidade sobre estas particularidades, pois quero saber ao certo se devo ou não cagar para V. Excia.
Santarém, 22 de outubro de 1795.
Pina Manique
Corregedor de Santarém”
Na minha modesta opinião, talvez a coisa se deva a uma congénita e muito vincada cagança. Portugal é um país de cagões que distribuem entre si mesmos com parcimónia - mas não equidade - aquilo que melhor e mais afincadamente produzem. Assim, na Justiça, toca a cada qual uma quantidade e uma qualidade de matéria castanha que varia na razão directa da sua categoria social.
Ainda a procissão vai no adro....
Deixem sair o acórdão da Casa Pia, do Isaltino, etc.....
Aí verão, mais uma vez, o descrédito a que a justiça está a chegar....
Mas eu até já ouvi dizer que há juizes e Mº Pº na maçonaria e na opus dei e gay........
Tá tudo dito!...
Enviar um comentário