José Manuel Fernandes, no Observador, faz um balanço provisório dos "casos" que envolveram José Sócrates ao longo dos anos e que os seus apaniguados, directos ou indirectos como Daniel de Oliveira e o inenarrável Pedro Marques Lopes, nunca quiseram ver.
Há mais casos e parece-me que o do bijan é um deles, muito pouco explorado quando o poderia e deveria ter sido.
Preferia não ter de escrever este texto – mas não posso deixar de o
fazer. Não posso porque há limites para a mistificação. E não posso
porque as “vergonhas” dos últimos dias são apenas um sinal de que o país
continua doente.
Primeiro que tudo, as “vergonhas”. Já vi muita
gente espantar-se por só agora, três anos e meio depois daquela detenção
no aeroporto de Lisboa, ela ter chegado às mais altas cúpulas do
Partido Socialista, assim de repente, como se uma luz tivesse descido do
céu e iluminado de repente o que estava à vista de todos os que não se
recusavam a ver. Já vi até elogiar a coragem da antiga namorada que veio
dizer alto, e com maior ênfase, o que já deixara escapar antes com
menos veemência: que Sócrates mentiu, mentiu, mentiu.
Peço
desculpa, mas o atraso não é de três anos e qualquer coisa. A cegueira é
muito mais antiga, muito mais teimosa e muito mais cúmplice. Tão antiga
e tão teimosa que, anos e anos a fio, sempre que surgia um novo caso, o
que se ouvia era um coro sobre “campanhas negras” dirigidas contra “o
político mais escrutinado da história da nossa democracia”. Sim, eu não
me esqueço.
Assim de repente, e sem ter ido ao fundo dos fundos,
recordo-me de um primeiro confronto entre José Sócrates e o primeiro
jornalista a investigar a sério a forma como governava: foi no início de
2001, o caso envolvia um subsídio de 200 mil contos (um milhão de
euros) à DECO, Sócrates era apenas ministro do Ambiente e o jornalista
chamava-se, e chama-se, José António Cerejo. Do choque resultou um
processo judicial em que Sócrates acabaria condenado a pagar uma
indemnização ao jornalista. Repito a data: 2001. Recomendo a revisita do processo e dos seus protagonistas. Arrepia perceber como o padrão de tudo o que se passaria depois já lá está.
Nos
anos que se seguiram houve mais, muito mais. As circunstâncias da
compra do seu apartamento num prédio de luxo na rua Castilho foi
referida pela primeira vez num artigo de capa da revista Focus em 2004, ainda antes de ser eleito líder do PS.
Depois houve o caso da licenciatura, contado por Ricardo Dias Felner no Público em Março de 2007 (mas revelado antes no blogue de António Balbino Caldeira).
É uma história que convém revisitar pois apesar do evidente interesse
jornalístico, o trabalho do Público é silenciado durante uma semana – a
barreira só se quebra quando Henrique Monteiro, então director do
Expresso, resiste aos telefonemas de Sócrates, sendo a história retomada
pelo semanário, que também revela as pressões exercidas sobre os outros
órgãos de informação. O processo a seguir aberto na Alta Autoridade
para a Comunicação Social (cujas actas esta tentou esconder) é uma vergonha sem nome.
A
seguir viriam mais pormenores sobre um duvidosos processo de
licenciamento na Cova da Beira e a picaresca, mas reveladora, história
das casas da Guarda (de novo uma investigação de José António Cerejo) e,
sobretudo, o caso Freeport, com o Jornal de Sexta da TVI a ter enorme
protagonismo na divulgação das suspeitas, tal como o Sol (e Felícia Cabrita).
Sabe-se hoje como acabou esse jornal dirigido por Manuela Moura Guedes e
ninguém ignora as maquinações para comprar, e calar, a TVI. E se não
gostam de Moura Guedes e já se preparam para dizer que foi tudo
“campanhas negras”, então consultem as peças de Carlos Rodrigues Lima no
Diário de Notícias.
Nesses anos, os do primeiro governo Sócrates,
eram raríssimos os que, à direita ou à esquerda, o criticavam, mas a
sua obsessão com a imprensa já era mórbida. Em Dezembro de 2007, numa entrevista
a Jean Quatremer, do diário francês Liberation, a propósito do triunfo
do Tratado de Lisboa (o do “porreiro, pá”), tratou-me como o seu “melhor
inimigo”. Mais tarde, em 2009, faria uma diatribe contra alguns
jornalistas na abertura do congresso do PS e, pouco depois, processaria João Miguel Tavares por causa de uma crónica intitulada O Cristo da Política Portuguesa. E na véspera das eleições tentou mesmo impedir a distribuição de um livro de Rui Costa Pinto.
Podia
continuar a lista, mas o ponto é fácil de estabelecer: mesmo antes de
ser reeleito para o seu segundo mandato não eram poucos os “casos”. Tal
como já era evidente a que o então primeiro-ministro beneficiava da
escandalosa proteção do então procurador-geral da República, Pinto
Monteiro, assim como do presidente do Supremo Tribunal de Justiça,
Noronha do Nascimento (nomeadamente durante o processo Face Oculta). É por isso bom recordar quem na altura desdenhava a denúncia da “claustrofobia democrática” realizada num célebre discurso de Paulo Rangel pelo 25 de Abril de 2007.
Demos
agora um salto e vamos até Paris e ao famoso apartamento. Não foi a
polícia que o descobriu – foi o Correio da Manhã, e isso foi muito
conveniente para os bem pensantes continuarem a sua ladainha do
“jornalismo de sarjeta”. Alguns dos “envergonhados” de hoje fizeram-se
de forma assanhada, outros de forma sumamente hipócrita. Vejam, por
exemplo, como Daniel Oliveira, essa consciência crítica da esquerda
nacional, descartou em 2010 todas as dúvidas que havia sobre os casos de Sócrates. Só não é mais penoso de ler porque, esta semana, o autor tratou de se justificar:
“Até à acusação do Ministério Público, em que passei a estar na posse
da informação necessária para formular uma opinião clara sobre o
comportamento ético de Sócrates, tive a posição que acho que um
comentador deve ter perante um caso desta gravidade política:
disciplinadamente expectante, por saber que seremos julgados no futuro
pelas posições que tomamos nestes momentos.” Não está mal para alguém
que se diz jornalista: não acreditem nos jornais, acreditem apenas no
que concluir o Ministério Público.
Já demorei demasiado a lembrar
que nem todos os jornalistas se calaram, mesmo quando os que falavam e
investigavam eram uma ínfima minoria, assim como já me alonguei
demasiado a recordar que as dúvidas sobre o carácter de José Sócrates
não começaram no dia em que conhecemos o amigo Santos Silva. Nesse tempo
podia-se não se conhecer os detalhes das férias em Veneza, mas via-se a
forma como vestia e os restaurantes que frequentava e isso cheirava a
esturro. Sempre cheirou a esturro.
Eu sei: algures neste passado
José Sócrates fantasiou a história de uma herança de um avô que até
metia volfrâmio, e neste país de brandos costumes isso parece ter sido
suficiente para desencorajar muitos jornalistas. Mesmo assim, no final
de 2014, já José António Cerejo, de novo ele, contou-nos a história dessa fortuna que não chegou a sê-lo.
Mas
a teimosia dos cegos voluntários, sobretudo a teimosia dos que
beneficiaram muito dessa sua cegueira – nas carreiras políticas, nas
prebendas, nos negócios, na influência no seio das suas profissões – não
se deu por vencida. E não esquecemos como tantos, mas mesmo tantos, só
se preocuparam nos últimos três anos e meio com a forma de actuar das
nossas magistraturas, com o segredo de Justiça ou com os direitos do
preso 44.
A esses – e nesses inclui-se praticamente todo o PS, mas
também uma legião de comentadores – nunca lhes ouvimos, pelos menos até
há bem poucas semanas, a mais singela manifestação de preocupação com o
que permitiu que um mitómano como José Sócrates fosse primeiro-ministro
durante seis anos. Pior: vimo-los conspirarem para derrubar o líder que
lhe sucedeu no PS, um António José Seguro que nunca se cansaram de
acusar de não defender com suficiente entusiasmo a herança do “menino de
oiro”, alguém que se atreveu a falar da teia dos negócios que conspurcara o partido e a governação.
Na
verdade o problema é mesmo essa herança, e ela não se resume apenas à
bancarrota de 2011 e ao amigo Santos Silva. A herança de Sócrates,
aquela que o país, e o PS, como bem pediu Ana Gomes, devem discutir é a
do “mecanismo” que tornou tudo possível. Um “mecanismo” que não resultou
apenas da venalidade alguns agentes políticos e económicos, mas o
“mecanismo” que permitiu que, numa democracia, dois homens – José
Sócrates e Ricardo Salgado – tivessem acumulado e exercido um poder de
que não se limitaram a beneficiar, pois com ele também geraram uma ruína
sem fim. Ainda o “animal feroz” era comentador da RTP e escrevi sobre
como ele constituía uma “activo tóxico”
para o PS e o país, como acreditara, com o líder do grupo Espírito
Santo, que os dois “podiam tomar conta do país numa espécie de duopólio
que beneficiava ambos”. Não fui de resto o único a escrever sobre a
forma como Sócrates quis fazer de Portugal uma quinta.
Pouco tempo antes, estávamos ainda no verão de 2014, o da queda do BES, interrogava-me
sobre se a queda de um banqueiro representava a queda do sistema que
ele representava, isto é, se seria “o sinal do fim de um regime e dos
seus hábitos promíscuos, o fim de um regime fechado, não concorrencial,
onde se protegem amigos e os amigos nos protegem a nós, um regime onde
se obedece aos poderes instalados.”
Ora é precisamente aqui que
regressamos neste momento de tantas “vergonhas” com que se procura
apagar o que se passou, o que se soube mas se ignorou, o que se disse
mas se quer fazer esquecer. Tal como regressamos ao país que tudo
tolerou, à generalidade da comunicação social que durante tantos anos
foi de uma docilidade incompreensível, esquecendo o seu papel de
vigilante da democracia. Tal como sobretudo regressamos aos vícios e
hábitos desse regime promíscuo, fechado e não competitivo.
Não é
preciso ser corrupto para se conviver bem, e até preferir, um sistema em
que a corrupção medra com mais facilidade. Sócrates, para construir a
sua rede de poder, encarniçou-se contra as entidades reguladoras
independentes ou tentou tomá-las de assalto. Hoje vemos sinais da mesma
hostilidade relativamente às vozes independentes, sejam elas o Conselho
das Finanças Públicas, o Banco de Portugal ou o regulador do mercado
energético. Sócrates preocupou-se mais com controlar o sistema bancário –
o que fez com a ajuda do seu amigo Vara e, é bom não esquecer, desse
homem de todos os tempos e todos os governos que se chama António Mexia –
do que em zelar pela transparência de procedimentos e lisura na gestão.
Hoje só podemos inquietar-nos quando conhecemos a oposição do PS a que
seja conhecida a lista dos grandes devedores da Caixa Geral de Depósitos
(os que beneficiaram de empréstimos de favor) ou quando nos espantamos
por Tomás Correia, acusado de ter recebido 1,5 milhões de euros do
famoso empreiteiro José Guilherme, continuar à frente da mutualista que
controla o Montepio.
Quanto mais um governo entender que deve ser
ele a mandar nas empresas e nos negócios mais fácil é criarem-se
situações como as que conduziram ao duopólio Sócrates-Salgado. E não
julguem que o digo por ter um coração liberal: se estudarem um pouco e
forem ver como é que a social-democracia sueca teve tanto sucesso no
passado e lá não se conhecem casos de corrupção como os vulgares em
Portugal verificarão que esta quase sempre procurou seguir uma regra de
ouro: a redistribuição da riqueza é com os governos, a criação de
riqueza é com as empresas e os empresários.
Em Portugal, como
tristemente sabemos, nem à direita do PS esta regra simples é bem vista.
É também por isso que, mesmo não havendo mais nada com a gravidade e a
dimensão do caso José Sócrates, a corrupção não é só um problema do PS.
Bem pelo contrário.
Não podemos contar só com a probidade dos
homens, temos de construir as instituições correctas, ter os devidos
mecanismos de limitação do poder dos governos e mudar muita coisa na
cultura política dominante. Infelizmente retrocedemos neste caminho
nestes dois últimos anos.