quarta-feira, junho 17, 2020

A questão chata dos juízes que falam e escrevem em jornais

Público de hoje:


Lendo isto uma conclusão se pode extrair: os juízes não podem falar ou escrever publicamente sobre qualquer processo ou mesmo sobre questões que possam envolver processos que possam surgir. Resumidamente significa que os juízes estão capados do direito de uma expressão em liberdade de pensamento. Tirando as participações em colóquios, conferências ou charlas de circunstância sobre as vírgulas das leis nada de nada lhes será admissível dizer, publicamente. Nem sequer que gostam de ver futebol e preferem o Porto ou o Benfica.

Parece-me uma leitura jacobina da lei existente, no Estatuto dos magistrados e que os impedirá de facto dessa expressão.

Como justificação dessa limitação de direitos encontra-se a "protecção da confiança na imparcialidade e integridade da Justiça", um chavão que se desmente no silêncio dos actos praticados à sombra das palavras capadas.

Os juízes não podem falar mas podem fazer, pela socapa e pela calada num comportamento jesuítico e hipócrita tudo o que lhes retira objectiva e subjectivamente independência, imparcialidade e integridade a si mesmos e à justiça.

A frase é demasiado forte? Então vejamos:

 Quando um magistrado mostra privada e publicamente que está associado politicamente a um partido de poder, mesmo que não esteja inscrito como militante, como é o caso evidente e notório do juiz Conselheiro ( do STJ!) Lopes da Mota, por exemplo e é por isso agora referido, o que significa tal facto para a independência, imparcialidade e integridade da Justiça?
Quando um magistrado, como ele,  é condenado administrativamente por pressionar colegas de modo inadmissível num caso singular que envolvia um primeiro-ministro da preferência política do mesmo como é que os colegas que o cooptaram para o STJ, o escolheram por via curricular e em entrevista, depois de saberem tudo isso, ignoraram tal facto?
O que podemos pensar e dizer do sistema judicial que no CSM e STJ isso fizeram? Que são um espelho de imparcialidade, isenção, dignidade da Justiça ao mais alto nível ? Pode pensar-se e dizer-se que o serão? Ou apenas o espelho da irrisão desses conceitos elevados que não se cumprem?

Da resposta depende outra questão: para quê capar a liberdade de expressão quando acontecem coisas dessas que arrasam qualquer veleidade de seriedade e respeitabilidade em tal sistema?

Mais: quando outra magistrada, no caso Francisca Van Dunem é escolhida para ministra porque é notoriamente alguém ligada a um partido político, por via familiar e não só, convivendo diariamente com alguém que tem interesses directos e muito importantes, de âmbito financeiro e não só, porque sendo advogado conseguiu muitas adjudicações do poder político que lhe é afecto, o que dizer?  E que dizer se durante tais processos, publicamente conhecidos, os mesmíssimos pares que escolheram aquele Conselheiro Lopes da Mota, a escolhem a ela, para futura Conselheira, a tomar o lugar imediatamente após sair do Governo, sem qualquer período de nojo?
Não vou buscar mais exemplos, como o do lamentável Mário Belo Morgado e outros.

O que dizer deste sistema?

Estava para elaborar um pouco mais sobre o "dever de reserva" mas ao escrever isto perdi a vontade porque me sinto enojado. Realmente. Não acredito neste sistema de hipocrisia e jacobinismo.

Apenas coloco aqui algumas passagens de um texto que me parecem bem mais apropriadas para o entendimento do que agora se entende dever ser  o tal dever de reserva e as alternativas a tal entendimento jacobino. Há sistemas muito menos hipócritas e jesuíticos que o nosso e colocam as reservas exactamente onde elas devem estar mas não alargam demasiado as interdições típicas de rolha para tapar declarações inconvenientes de quem as poderia fazer:

É o que ocorre com os chamados Princípios de Bangalore, onde a propósito se consigna que: «o juiz não deverá fazer qualquer comentário relativamente a processo a seu cargo ou que possa vir a estar sob a sua direcção, que possa razoavelmente ser interpretado como antecipatório do seu juízo, nem deverá, de qualquer forma, comprometer a justiça do caso. Também deverá abster-se de fazer qualquer comentário, publicamente ou não, que possa afectar o julgamento justo de qualquer caso.»

Processos ou assuntos que possam lidar com processos em concreto, sim, reserva, mas apenas quanto ao perigo de um magistrado se comprometer com a imagem de independência e imparcialidade. Para além disso é capador.

(...)

» De modo mais abrangente os Princípios de Burgh House31, de 2004, respeitantes à Independência da Magistratura Internacional, preconizam que as liberdades de expressão e de associação dos juízes devem ser exercidas de modo compatível com a função judicial e em nenhuma circunstância podem afectar ou comprometer a imparcialidade ou independência dos juízes (artigo 7.º, n.º 1), devendo estes ser parcimoniosos em comentários extrajudiciais a decisões próprias ou de outros juízes (artigo 7.º, n.º 3); não devendo comprometer-se com qualquer outra actividade extrajudicial incompatível com a função, nomeadamente não devem exercer qualquer cargo político (artigo 8.º, n.os 1 e 2); e na sua vida pública ou privada devem evitar contactos com advogados, agentes judiciários ou outras pessoas ligadas a processos pendentes (artigo 12.º, n.º 1), susceptíveis de comprometer a sua imparcialidade ou a imagem de imparcialidade.

Não devem exercer cargo político nem aparentar comprometimento com políticos ou os que ocupam cargos políticos que é bem pior do que pertencer a um partido...e disso, em tribunais superiores parece-me grave porque existem casos desses. Demasiados. E ninguém se incomoda com tal porque jesuiticamente podem dizer que assim não será sabendo perfeitamente que o é.

(...)

No actual mundo tecnológico e global o juiz é, cada vez mais, «actor social e actor político de primeira grandeza»35. Por isso não é, nem deve ser, um cidadão asséptico, uma espécie de sacerdote que não sai da sacristia, nem deve ter uma vida monacal, alheada das mudanças que fazem avançar o mundo. Pelo contrário, só estando bem integrado na comunidade, atento à realidade que o rodeia e tendo participação cívica activa, poderá bem desempenhar o seu múnus. O que sumamente se lhe exige, para ser legítimo credor da confiança pública, é uma reputação isenta de mácula e tributária de um irrepreensível conceito público. Ocorre, por isso, que a sua condição institucional se interpõe ante o exercício de alguns direitos fundamentais, restringindo-os, embora apenas na medida necessária ao não comprometimento daquele valor supremo, estruturante do sistema democrático, que é a já referida confiança da comunidade no sistema e nas instituições da justiça".
  
As "redes sociais" e outras de publicação opinativa não prejudicam a isenção ou imparcialidade de qualquer magistrado se forem usadas dentro daqueles limites, ou seja, de não se tornarem susceptíveis de alguém poder pensar que o magistrado não é isento e imparcial no julgamento dos casos concretos que tem entre mãos.  A publicação de opiniões pessoais do magistrado sobre assuntos judiciários ou até de processos que nunca lhe passarão pelas mãos vale o que vale: uma opinião pessoal, sem importância demasiada se for explicitada e fundamentada. Nada mais. Proibir isso em nome daquilo é o exercício jacobino perfeito: pretender um efeito perverso ( calar vozes dissonantes ou inconvenientes)  através de uma aparência correcta e legalizada apresentada como norma impositiva.

Mais: a opinião de um magistrado sobre um caso que aparece relatado nos media, geralmente apresentando apenas um lado da questão e em casos mediáticos o das pessoas que têm poder para o apresentar nas tv´s rádios, jornais e redes sociais, deveria ser acolhida sempre que se destine a recolocar a questão de onde não deveria ter saído.
Ou seja, se um magistrado se exprime sobre o que os media exprimem acerca de um processo não está necessariamente a pronunciar-se sobre o processo mas sobre os media que o fazem. E esse direito não lhe deveria ser coarctado, a não ser que interesse ao poder judiciário de topo que assim seja. Em alguns casos a aparência é mesmo essa...
Isso ocorre com frequência cada vez maior e perante a completa passividade dos poderes judiciários amedrontados com artigos deste teor que se transcreve sobre "o dever de reserva".
Confundem dever de reserva com imposição ao silêncio sobre tudo o que diga  respeito a casos judiciários ou judiciais, mesmo que os media atentem gravemente contra a justiça desses mesmos casos, manipulando, distorcendo e desinformando.
Não se admitindo a expressão de magistrados relativamente a tais situações o que resta? Nada porque mais ninguém se incomoda...e quem tem interesse no sensacionalismo e no comércio de notícias necrófilas enriquece e prospera no mundo dessa iniquidade. Sim, estou a referir-me ao mundo da Cofina e de outras TVI. 
(...)

Na ponderação casuística, deste jogo de direitos e deveres, muitas vezes, o critério operativo mediador dos valores em referência tem de ter na devida conta as representações sociais, pois que tal como à mulher de César, aos juízes não lhes basta serem sérios, têm também de parecer sérios. Daí que tão relevante como manter uma conduta irrepreensível é que ela também assim se apresente aos olhos de uma pessoa razoável, imparcial, bem informada e de boa fé. Se assim for, a turbulência normal que filtra as representações sociais encontrará o padrão de confiança que os equilíbrios institucionais exigem.

Sobre o ser e o parecer parece-me isto paleio oco. Quem vê caras não vê corações e essa é que é a verdadeira sabedoria e até é popular. "Equilíbrios institucionais"?! A que se referem os autores? Desconfio que não é nada de bom...

Relativamente a estes considerandos os autores do artigo (juiz  J.F. Moreira das Neves  aqui melhor apresentado e Rui Silva Dias que julgo também ser juiz)  referem depois casos concretos e exemplificam: 

"No mais, quer-nos parecer que a densificação do dever de reserva do juiz, nesta vertente, não suscita especiais dificuldades. Isto é, afigura-se-nos medianamente claro que o juiz não deve tecer comentários (públicos ou privados) sobre os seus processos, sobre as decisões por si proferidas e sobre as decisões proferidas pelos seus colegas. A mácula que estas condutas lançam sobre a imagem da judicatura é óbvia. E aos olhos de uma pessoa razoável, imparcial, bem informada e de boa fé, não deixará de comprometer a confiança na integridade judicial." 


Sendo assim como se compreendem os inúmeros comentários de juizes e magistrados em geral sobre a prestação do juiz Neto de Moura, num processo concreto? Note-se que nem sequer foram para explicar o sentido a decisão, substituindo-se ao juiz em causa numa defesa hipotética de honra pessoa e profissional mas apenas para o achincalhar.
Onde andou o CSM nisto? Andou a deitar achas para a fogueira, com declarações incendiárias de alguns dos seus membros mais distintos, incluindo o presidente e vice-presidente. Para achincalhar profissionalmente o visado, pura e simplesmente. Para o arrasar pessoal e profissionalmente no mais hediondo acto de assassínio de carácter de que tenho memória recente. 
É disto que se precisa como modelo de juiz e ainda por cima de órgão de cúpula da magistratura? 

Depois aparece outra abertura aparentemente mais consentânea com a liberdade de expressão mas igualmente castradora e tendente a obrigar o desgraçado ao arrimo da gravitas da função: 

Fora do âmbito estatutário (mormente da disciplina do artigo 12.º do E.M.J.) e sem desconsideração pelas regras da deontologia judiciária conta-se o direito de o juiz (aliás, em geral ressalvado em praticamente todos os códigos de ética judicial no mundo) participar, das formas mais variadas, por escrito ou oralmente, no debate das questões da profissão, do sistema jurídico e judiciário e das matérias da justiça. Essa ressalva perspectiva-se,inclusivamente, como um dever funcional de contributo para a melhoria do sistema jurídico e progresso do Direito. Mas como em todos os outros espaços de liberdade, há perigos para os quais o juiz se deve acautelar. Como elucidativamente adverte Pedro Vaz Pato50, também aqui há-de o juiz ter especial cuidado de forma a não gerar no público a convicção de que tem ideias pré-concebidas em relação a casos com que possa vir a ser confrontado no tribunal, devendo especialmente considerar qual a sua área concreta de trabalho e de que forma a sua participação vinculará a sua imagem51. Ou seja, mesmo nestas intervenções, é mister que a sua intervenção se faça segundo critérios de proporcionalidade, adequação e necessidade52 e que saiba separar as águas da estrita discussão técnica, daquela que visa o impulso da actividade legislativa ou política, sob pena de sair minada a confiança de toda a comunidade na vinculação das decisões por ele proferidas à vontade do legislador" .
(...)

Em colorário:

No mesmo registo, de um ponto de vista ético, ninguém objectará que os juízes não devem usar dos seus direitos estatutários especiais para solicitar ou simplesmente aceitar vantagens na sua vida privada, a que de outro modo não poderiam legitima e razoavelmente aspirar. Mais difícil será avaliar a situação do juiz casado ou unido de facto com um consorte que milita ou desempenha funções de responsabilidade numa associação de grande visibilidade social (que tanto pode ser um clube de futebol como um partido político). 
Naturalmente que os concubinos se acompanharão em eventos sociais, alguns dos quais conotados com essa associação. O juízo ético passará sempre pela razoabilidade, aferida aos olhos de uma pessoa imparcial, bem informada e de boa fé. A situação poderá com equilíbrio sustentar-se, mas também, em caso extremo, vir a configurar uma incompatibilidade ética.


Importará, por isso, ter bem presentes as palavras de Agustina Bessa-Luís, que com elevado sentido de oportunidade o senhor Presidente da República entendeu por bem dirigir ao 8.º Congresso dos Juízes Portugueses: «a crítica é menos eficaz que o exemplo.» 

Perante isto a quem interessa que os magistrados estejam calados, sempre e em tudo e não possam sequer exprimir opinião, jurídica que seja, em termos livres e sem sujeição a amarras de fato e gravata, nos colóquios do costume?

Sem comentários:

O Público activista e relapso