segunda-feira, novembro 23, 2020

Um Ministério Público capturado pela PGR...

 No Sábado, no Público  um magistrado do MºPº que já foi dirigente do Sindicato disse isto: a última directiva da actual Procuradora-Geral da República, Lucília Gago,  com orientação obrigatória para os magistrados a quem se dirige, "é uma fraude".


Hoje, Paulo Dá Mesquita que já foi magistrado do MºPº e fez parte do Conselho Consultivo do MºPº, actualmente juiz do Tribunal de Contas, escreveu isto, a título pessoal,  no Observador, em tom ainda mais arrasador porque demonstrando as incongruências e ilegalidades manifestas na referida directiva: 



1Invasão de competências de órgãos de soberania

A Procuradoria-Geral da República (PGR) determinou um conjunto de regras intituladas «o exercício de poderes hierárquicos em processo penal procedimentos» numa diretiva 4/2020 (publicitada no sítio da PGR). Este novo comando genérico da PGR surge na sequência de uma diretiva que colocava em causa os checks and balances do sistema de investigação criminal, a legitimidade da direção do inquérito pelo MP e gerava um conjunto de desequilíbrios em termos de transparência e controlo externo (pelas partes processuais, tribunal e sociedade em geral) das decisões concretas de agentes hierárquicos do MP incompatíveis com princípios estabelecidos na Constituição .

Desta feita, a PGR não se limita a determinar que o Ministério Público (MP) adote de forma unitária uma interpretação do sistema legal que coloca em causa valores do mesmo, assume um poder soberano ao estabelecer um regime procedimental que, além do desrespeito de princípios e normas do processo penal, constitui uma inaudita invasão de competências reservadas da Assembleia da República e dos tribunais judiciais.

2Primeiro ensaio de ordens ocultas: o elefante entra na loja de porcelana

Como se sublinhou em fevereiro, sobre o tema das ordens concretas sem cobertura legal dirigidas ao procurador responsável pelo inquérito existem duas ideias nucleares: (1) O inquérito é uma fase de um processo judiciário único que tem outras fases dirigidas por juízes e, consequentemente, todas as decisões hierárquicas concretas não são questão interna do MP, mas devem integrar o processo e aí estar plasmadas; (2) No Código de Processo Penal (CPP) e no Estatuto do MP (EMP) estão previstos e regulados vários poderes hierárquicos suscetíveis de afetar e conformar, através de comandos concretos, a direção inquérito, os quais revelam um regime especial sobre intervenções hierárquicas dirigidas aos responsáveis pelo inquérito (cf. pontos 4 a 10).

Pelo que, o problema de ordens sem cobertura legal que visam o inquérito penal é indissociável de a lei atribuir ao MP qualidade de autoridade judiciária para dirigir uma fase (inquérito) de um processo judiciário, suscetível de transitar para fases dirigidas por juízes (instrução e julgamento).

Este esquema foi estabelecido no CPP de 1987 e vigorou durante mais de 30 anos, apenas tendo sido globalmente posto em causa pela atual PGR, depois da controvérsia sobre a intervenção concreta de um diretor do DCIAP por si escolhido (que deu uma ordem fora do processo para obstar à inquirição de duas pessoas num inquérito)

Foi então que a PGR emitiu uma primeira diretiva que, não podendo ultrapassar a condicionante de se exigir previsão legal expressa para comandos hierárquicos processuais relativos ao inquérito penal, apresenta a seguinte inovação: além das ordens previstas na lei podem ser dadas quaisquer outras sem direta cobertura legal, com o argumento de que as mesmas «esgotam-se no interior da relação de subordinação hierárquica e não constituem um ato processual penal, não devendo constar do processo»  (sic).

Em síntese, a diretiva 1/2020 estabeleceu a seguinte orientação: as regras constantes da lei sobre termos, prazos e procedimentos de comandos hierárquicos suscetíveis de se repercutir no inquérito penal tratam apenas das ordens «processuais» da hierarquia do MP, mas além dessas podem ser dadas quaisquer outras ordens «ainda que dirigidas a um determinado processo concreto», as quais porque se «esgotam no interior da relação de subordinação não devem constar do processo», com o argumento de que «os restantes sujeitos processuais» «não têm qualquer interesse no seu conhecimento» (sic).

Esse exercício de contorcionismo jurídico, a partir da manipulação de rótulos, revelou de forma demasiado expressiva uma cultura autocrática contrária a checks and balances, geradora de algum desconforto, mesmo entre apoiantes de uma ação penal controlada por um diretório de nomeados politicamente, e reações que vieram a determinar a inédita «suspensão» de uma diretiva da PGR.

3A diretiva fora da lei

 

Na nova diretiva a PGR, que há menos de um ano sustentou que «os restantes sujeitos processuais» «não têm qualquer interesse» no «conhecimento» das ordens de agentes da hierarquia do MP dirigidas a inquéritos concretos, arvora-se em legislador criando um procedimento ilegal. PGR legisladora que, nomeadamente, regula poderes exclusivos de membros do MP para decidirem casuisticamente se «sujeitos processuais» têm «legítimo interesse em conhecer» ordens «dirigidas ao processo penal».

Agora, é claro que a PGR opera fora do domínio da interpretação de lei assumindo um programa próprio com a criação, nomeadamente, de «dossiês» especiais sobre categorias de casos sem qualquer suporte na lei, como os caracterizados, segundo a diretiva, pela «particular sensibilidade que revistam em razão da relevância» dos «intervenientes processuais (v.g. pessoas particularmente expostas)» (sic).

Revela-se, assim, a pretensão de serem assumidos poderes limitados a órgãos de soberania de caráter eletivo, estabelecendo, em face da avaliação sobre objetivos da PGR, novos procedimentos dirigidos ao exercício fora do processo «de poderes hierárquicos em processo penal».

Criação de um procedimento administrativo para decidir sobre matérias processuais penais em que se estabelecem novas competências do MP sem qualquer suporte legal. Não tendo a PGR poder constitucional para criar competências, ainda que administrativas, com eficácia externa, não se ficou por aí e optou por reservar a agentes da estrutura burocrático-administrativa do MP o poder para tomar decisões sobre eventuais «interessados», o que, além de violar reservas legais da Assembleia da República sobre criação de regras relativas ao exercício de poderes «em processo penal», desrespeita limites derivados de competências constitucionais dos tribunais quanto ao  controlo do exercício de poderes em processo penal e à decisão de conflitos entre entes estaduais e sujeitos privados.

Esquema que compreende a atribuição à própria PGR do poder de decidir em última instância quaisquer pretensões de sujeitos processuais de acesso a comandos proferidos pelo diretor do DCIAP. Com efeito, se o arguido ou o assistente pretenderem ter conhecimento de ordem concreta desse diretor relativa ao inquérito têm de o pedir ao referido diretor (arts. III.1 e III.3) e se este indeferir a decisão final compete à PGR (art. III.5).

Isto é, no seu regulamento procuratório a PGR legisla sobre «titulares de interesses legítimos» de natureza processual e institui um procedimento e um esquema de recursos internos em que a mesma PGR decide como última instância!

Desrespeita-se, ainda, de forma grosseira um regime legal que estabelece o segredo de justiça como única forma de ocultação de decisões dirigidas ao processo penal, sendo a sujeição a segredo do inquérito sempre controlada em última instância por juízes e não por membros do MP. E mesmo o segredo de justiça compreende uma limitação de acesso apenas temporária, pois a partir de determinado momento todos os atos decisórios estarão obrigatoriamente disponíveis a todos os que consultem o processo, nomeadamente, quando os autos transitem para fases judiciais.

Regulamento procuratório que, embora nunca se refira especificamente a juízes e tribunais, parece privar estes do «dossiê» das decisões secretas, pois se o «dossiê» não integra o processo não seguirá para o controlo direto que os tribunais independentes exercem sobre os autos do inquérito quando estes transitam para incidentes e fases judiciais.

A invasão de competências reservadas a órgãos de soberania e a colisão com princípios fundamentais do Estado de direito determina que a diretiva 4/2020, para usar um eufemismo, ponha em causa o regular funcionamento das instituições.

Regime procuratório que, além de fora da lei, consagra múltiplas regras contra a lei e que vão muito para além da sua petição de princípio (decisões concretas dirigidas ao processo proferidas fora do processo), a qual constitui apenas a raiz de um articulado tingido por múltiplas colisões com institutos processuais nucleares para uma atuação do MP conforme um esquema equilibrado de garantias e controlos judiciários.

PS. A gravidade e impacto no sistema jurídico das duas diretivas da PGR foram os motivos determinantes da escrita deste e do anterior artigo — os pareceres do Conselho Consultivo da PGR (CC) apenas foram relevados enquanto integrados na fundamentação das diretivas da PGR. Contudo, não se pode deixar de assinalar um sinal revelado na publicitação do parecer do CC n.º 9/2020, de 9-7-2020 (invocado na diretiva 4/2020): apesar de resultar dos descritores (constantes do sítio eletrónico PGR) que terá existido um vogal vencido com declaração de voto, o respetivo conteúdo é omitido, impedindo os interessados de conhecer as razões apresentadas. Este facto impõe uma nota, com algum elemento pessoal (enquanto antigo membro do CC), sobre o estatuto particular desse importante órgão do Estado. Os consulentes (tradicionalmente apenas PGR, Presidente da Assembleia da República e membros do Governo, e desde 1-1-2019, também representantes da República para as regiões autónomas e órgãos de governo próprio das regiões autónomas) podem solicitar parecer, mas deve existir uma absoluta autonomia do CC (embora nem todos o compreendam) na emissão da pronúncia, que se deve limitar a questões jurídicas e ser independente dos interesses e objetivos dos consulentes (os quais se não concordarem com os pareceres podem, simplesmente, não os seguir, sendo uma responsabilidade própria e exclusiva do consulente pedir parecer e adotar ou não as interpretações do CC). O CC, por força da lei, tem um funcionamento colegial, devendo cada um dos vogais na apreciação das questões jurídicas objeto de parecer decidir de forma independente e sem obedecer a quaisquer ordens, tendo o PGR (ou o seu vice quando substitua aquele) um direito de voto (que apenas prevalece em caso de empate). As declarações de voto devem ser objeto de publicidade idêntica à dos pareceres. Daí que, tal como sucede com a jurisprudência dos acórdãos dos tribunais superiores, muitas vezes se apresentem mais importantes os argumentos das teses do(s) vencido(s) do que os fundamentos da maioria.  Aspeto importante sobre a forma de compreender a responsabilidade institucional de todo e cada um dos membros do CC que, enquanto tal, também são magistrados do MP. A título meramente ilustrativo (pois foram múltiplas as declarações de voto que subscrevi no CC), posso referir os pareceres do CC n.º 20/2010 e n.º 16/2012 em que a publicitação no Diário da República compreendeu o texto dos votos de vencido que lavrei isolado com um texto profundamente crítico do sentido da doutrina e argumentos adotados pela maioria (composta por todos os outros membros do CC, incluindo o então PGR). Podendo, ainda, acrescentar-se que, apesar da adoção pelo Governo das orientações dos dois pareceres, no primeiro caso (20/2010), a jurisprudência dos tribunais judiciais tem de forma maioritária acolhido a tese oposta preconizada no voto de vencido e, no segundo (16/2012), os Conselhos Superiores de Magistratura dos juízes dos tribunais judiciais e dos tribunais administrativo e fiscais, bem como o da magistratura do MP também perfilharam o entendimento do isolado vencido, quer quanto à falta de competência do Governo para decidir a questão quer quanto ao fundo da mesma. Desta forma, existe o risco de a ocultação da declaração de voto de vencido lavrado no parecer n.º 9/2020 ser visto como mais um sinal sobre o estado da transparência na PGR.

Paulo Dá Mesquita é ex-membro do conselho consultivo da PGR e é atualmente juiz conselheiro do Tribunal de Contas, mas escreve este artigo a título pessoal.

Resta perguntar o que vão fazer os magistrados do MºPº, in totum e particularmente o Sindicato que os representa em esmagadora percentagem, porque está em causa algo mais importante que o lado corporativo da instituição: está em causa o Estado de Direito que temos e que a PGR atinge de modo inacreditável com a referida directiva. 

E mais outra opinião jurídica, no mesmo sentido acima indicado, no Público de 24.11.2010: 



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STA: quatro anos para isto!