quarta-feira, novembro 09, 2011

O assunto não traz notícia

Ontem não comprei o Público e por isso escapou-me esta notícia:

A justiça quer levar a tribunal um sem-abrigo, acusado de tentar furtar seis chocolates de um supermercado Lidl no Porto. A empresa não foi lesada, mas decidiu apresentar queixa e o homem, cujo paradeiro é incerto, foi formalmente acusado pelo Ministério Público (MP) do crime de furto simples.

Na edição de hoje, na secção "blogues em papel", citam-se vários blogs que comentaram a notícia. Todos se colocam numa posição de observadores superiores da nossa justiça e descarregam balas palavrosas sobre o facto de o pobre sem-abrigo vir a ser julgado pelo facto, embora ande em parte incerta, como é próprio de sem-abrigos.

O bastonário Marinho e Pinto já deu a sua sentença habitual ( mas ainda não falou sobre a sua avença nos jornais que acumula com o vencimento que recebe, de conselheiro): "não prestigia o supermercado nem prestigia a justiça".

O blogueiro Pitta, versado em literatura avulsa e neste caso quiçá de cordel, pergunta se "o procurador responsável esta a dormir a sesta?" E embarca na frioleira habitual do queixume amargo de ter de pagar impostos para isto...
Não imagino que impostos paga Pitta mas acho que neste caso devia ser taxado do modo seguinte:

O furto em supermercados é corrente, habitual, usual, corriqueiro, quase de formigueiro. Por isso mesmo os estabelecimentos têm câmaras, seguranças, controlos electrónicos, etc.
Subtrair alguma coisa a alguém, contra sua vontade e conhecimento, é um crime de furto previsto e punido pela lei penal. Mesmo que seja meia dúzia de chocolates, valendo uma dúzia de euros, num supermercado onde se estragam todos os dias muitos géneros alimentícios.
E o crime consuma-se logo que o autor se aproprie das coisas, mesmo que depois seja apanhado e as coisas imediatamente devolvidas, logo que passe a caixa registadora sem pagar.
Porém, nem todos os furtos merecem atenção judiciária. As leis penais, aprovadas pelo poder legislativo votado e defendido pelos Pittas, em relação a estes casos de "pilha-galinhas" ou de furto quase formigueiro, faz depender da queixa dos ofendidos, a prossecução penal. Se não houver queixa não há processo nem acusação nem julgamento.
E o que devem fazer os lidl´s que proliferam por este país? Não fazer queixa? Esquecer os furtos correntes, habituais, corriqueiros e relegá-los para o monturo de coisas estragadas? Assumir o risco do negócio e apontá-los como perdas contabilizadas em custos, descontando nos impostos? É uma solução, porventura adoptada noutros sítios. Mas o Lidl não escolheu esta opção fiscal e vai daí, como alemães que são, castigam os prevaricadores, mesmo os do formigueiro. E quem é que tem a competência exclusiva, fixada em leis que o Estado aprovou há muitos anos, para perseguir crimes e criminosos? O MºPº. E o que devem fazer os agentes do MºPº sempre que tenham que actuar em conformidade com a lei e o direito? Esquecer os crimes, arranjar um procedimento administrativo, arquivá-los numa gaveta sem fundo e dizer ao queixoso que devia ter vergonha? É isso que devia fazer o tal "procurador que dorme a sesta"?

Portanto, são esses princípios que os Pittas iludem, em nome da sua particular noção de justiça que não tem apoio legal mas constitucionalmente lhes é mais afecta.
Poderiam citar-se mais alguns: "dura lex, sed lex" ou "todos os cidadãos são iguais perante a lei", o que desvirtuaria a particular noção de justiça que afeiçoa os Pittas: os pobrezinhos devem ser poupados e os ricos castigados. Em nome do sacrossanto princípio da igualdade ou de um esquivo fundamento jacobino. Daí a importância que o Público traz à notícia.
E o assunto não traz notícia, nem rasgos de inspiração, como cantavam os Trovante.
E são estes implacáveis que indignam e assustam os nossos Pittas acostumados a brandos costumes e a um situacionismo anómico e de compaixão pelos sem-abrigo, coitados que passam fome e frio e estes malvados dos tribunais dormem a sesta. Se alguém precisar de saber o que é o "pathos" da esquerda portuguesa, aí o tem.

Questuber! Mais um escândalo!