O jornalista Ferreira Fernandes, já conhecido em juízos
deste blog, escreveu um livro de recolha de memórias dispersas que “bebem num
período que vai de 1 de Janeiro de 1974 ao grande dia.”
Comprei o livro que se lê de um fôlego porque refeito de
entradas numeradas de 1 a 327. O jornalista avisa logo no início que são “falsas
recordações: são escolhas de jornalista compulsadas em jornais da época”.
Fico mais tranquilo em saber que este “lembro-me” é apenas
reminiscência de um imaginário e não o esforço denodado em recuperar memórias
de além pirinéus.
Trata-se portanto de um memorial de convento imaginário de
uma religião com muitos crentes. A
religião é a Esquerda ecuménica e os seus profetas são legião.
Ferreira Fernandes é um deles e isso nada tem de mal porque “é preciso acreditar, é preciso acreditar”, como cantava o poeta, também profeta da mesma religião.
Ferreira Fernandes é um deles e isso nada tem de mal porque “é preciso acreditar, é preciso acreditar”, como cantava o poeta, também profeta da mesma religião.
O credo principal assenta
fundamentalmente no “grande dia” que foi o da libertação e revelação,
depois do tempo das trevas . É uma mensagem simples e eficaz e esse evangelho
tem sido difundido ao longo dos últimos 40 anos. Este “lembro-me que” é mais
um dos sermões dessa montanha mágica.
Por mim preferia outra teologia, de libertação efectiva
dessa falsa religião que nos tem conduzido a novas formas de opressão, mais
subtis e eficazes porque redundantes nos logros dos idealismos acéfalos.
Para começar o sermão, Ferreira Fernandes poderia
lembrar-se, até porque nem precisa de consultar jornais velhos, da razão por
que estava em Paris, em 1974, com 25 anos.
Seria por causa da tropa, com incorporação obrigatória em
1968 e remessa para o Ultramar, muito perigoso nessa altura? Se foi, não sabemos e por mim gostaria de
saber se o autor foi refractário a essa incorporação que levou muitos jovens ao
Ultramar para combater pela “Pátria”, palavra usada e em versos tão repetida,
mas que não faz parte do credo da Esquerda que prefere outro versejar.
No livrinho, coisas da tropa, só as que lembram o “grande dia”.
Há quem tenha outras memórias tão válidas quanto aquelas.
Por exemplo, o Observador ( que Ferreira Fernandes não consultou porque não fará parte do acervo memorial) de 15 de Fevereiro de 1974 dava-nos conta do
que se passava em Moçambique, perto da barragem de Cabora Bassa.
Há quem se lembre- e conte- que nessa altura de guerra, em 1972, a viagem de Tete à barragem, em estrada de alcatrão, tipo tapete, para abastecimento, se fazia com colunas militares diárias que iam e vinham e se cruzavam a meio do caminho de 120 km. Durante o percurso era certo e sabido que se ouviria um matraquear de “costureiras” ( aposto que Ferreira Fernandes não sabe o que será…e não tem a ver com costura) vindo do mato a escassas dezenas de metros adentro do capim denso ou da vegetação africana. Esse matraquear era sinal de morte e por isso de perigo constante e houve quem fizesse o percurso dia sim dia não durante meses e meses a ouvir tal barulhinho e rebaixado por trás dos sacos de areia dos "unimogs".
Quem se lembra disto poderá questionar legitimamente quem
apoiou os que andavam de costureiras ao colo, naquela tarefa de cerzir vidas, sendo portugueses e depois regressados após o "grande dia".
Nas trezentas e tal entradas do livrinho há duas dúzias
desses apoiantes de costureiras que são aclamados como heróis das cantigas (
venham mais cinco), das bombas de carnaval ( ARA) das letras e artes (as
editoras da cor e os pintores da manta) e outros
heróis revolucionários que ansiavam pelo “grande dia” para o tornar noutro dia
grande de amanhãs a cantar da terra das costureiras.
Há umas cinco entradas no livrinho que me causam perplexidade porque se detêm numa revista da época que nem se vendia nos quiosques como a Crónica Feminina, nunca citada.
Houve várias revistas da época dignas de menção, uma delas o Observador que acabou ingloriamente naquele número citado de 15 de Fevereiro de 1974. Ferreira Fernandes dessas não se lembra.
Houve várias revistas da época dignas de menção, uma delas o Observador que acabou ingloriamente naquele número citado de 15 de Fevereiro de 1974. Ferreira Fernandes dessas não se lembra.
Mas lembra-se muito bem desta, uma certa Continuidade que nem aparecia em França, a não ser por assinatura que suspeito não seria o caso...
A Continuidade era a revista da DGS. Não vem lá o nome PIDE, mas Ferreira Fernandes como a maioria dos que se lembram, sabem que era da PIDE, o nome criptográfico da DGS. Portanto, de um jornalismo rigoroso até dizer basta.
Por outro lado, havia então outra revista que é de lembrar mesmo pelos que não se lembram: a Cinéfilo, também do credo e com sermões semanários sobre o evangelho da esquerda.
Um deles, de 23 de Fevereiro de 1974, tem piada porque ainda na semana passada foi repristinado pelo autor: Vasco Pulido Valente. A tirada sobre a sociologia é de antologia, ainda hoje. Por isso temos cerca de 30 mil licenciados na coisa e no credo. O dito, surgido no "grande dia".
Na linha de pensamento de VPV esta entrevista de Óscar Lopes à Vida Mundial de 7( ou 8 que é a data da capa) de Fevereiro de 1974, em que falava do papel dos "intelectuais", os verdadeiros sacerdotes da crença no "grande dia".
E para quem cita a tropa e o anunciador do "grande dia", Spínola, vale a pena recordar o que o mesmo dizia em 17 de Janeiro de 1974 e que não coincidia inteiramente com as intenções dos que agora se lembram:
Para terminar, o livro é este e vale a pena folhear:
E tem uma imagem muito curiosa e desfocada que também já mostrei aqui ( porque tenho o original).
Será possível que se tenha esquecido? Não acredito.