Observador, Rui Ramos:
Hoje, tudo pode parecer inacreditável. Há cem anos, em plena I Guerra
Mundial, uma seita de revolucionários profissionais, sustentada pela
Alemanha, derrubou o governo da república democrática russa em
Petrogrado. Como foi possível interpretar esse golpe como uma “revolução
de massas contra o czarismo”? Os bolchevistas impuseram uma ditadura
implacável. Como foi possível ver nesse despotismo a “emancipação da
humanidade”? A União Soviética causou alguns dos maiores desastres
humanitários e ecológicos da história. Como foi possível confundir essas
calamidades com um “futuro radioso”?
Esteve a verdade escondida entre 1917 e 1991? Não, nunca faltaram
provas e testemunhos da tirania comunista, nem sequer arquivos inteiros,
como os que Merle Fainsod, em 1958, explorou no clássico Smolensk under Soviet Rule.
Em 1976, a partir das estatísticas do comércio externo (as únicas que
não estavam falsificadas), Emmanuel Todd previu o colapso de uma União
Soviética com o perfil económico de um país do Terceiro Mundo,
a exportar matérias-primas em troca de tecnologia e de capitais. A
verdade esteve sempre à mostra. Mas enquanto foi poder, o comunismo
soviético teve crentes, e ainda hoje os tem, porque não se dissipou de
todo a pegada desse poder. O poder: eis a chave de toda esta história.
Se algo distinguiu Lenine na tradição revolucionária, foi a
prioridade dada ao assalto e uso da maquinaria do Estado moderno. Era
esse o meio para fazer revoluções. Nunca, por isso, perdeu um segundo
com utopias. Ninguém o retratou tão bem como Alexandre Soljenitsin, na
narrativa Lenine em Zurique:
laborioso, céptico, sarcástico, sem ilusões, sem benevolências,
compenetrado de que uma revolução era, antes de mais, uma questão de
arranjar dinheiro para pagar aos revolucionários. A revolução soviética
foi a primeira a ser feita por uma elite militarizada, burocrática e
pretensamente “científica”, para quem a ideologia consistia, de facto,
numa técnica: a técnica da conquista e acumulação do poder numa
sociedade, aproveitando e provocando “crises e contradições”. Nenhum
princípio alguma vez limitou os comunistas. A democracia, que
reivindicavam na oposição, era apenas uma etapa para a conquista do
poder; o igualitarismo socialista, que invocavam no governo, um pretexto
para a concentração do poder no Estado. Nunca coerência ideológica
obstou a que mudassem de políticas, nem camaradagem partidária os
impediu de se torturarem e matarem uns aos outros.
O comunismo soviético foi acima de tudo uma tecnocracia. Talvez nunca
tenha enganado realmente ninguém. O que conseguiu foi fascinar muita
gente com o espectáculo real ou imaginário da sua disciplina e
mobilização. Por alguma razão, os desfiles militares à prussiana e a
exibição de armamento tornaram-se a sua liturgia central. A muitos dos
que tinham sido educados, desde o século XIX, no culto messiânico da
ciência, da tecnologia, e do Estado, a encenação do poder soviético pôde
parecer a consumação do “progresso”. Para aqueles que detestavam a
“sociedade burguesa” ou o “imperialismo americano”, a URSS como
“super-potência” foi, sobretudo depois da derrota do nazismo alemão, a
alternativa e contrapeso. O que importava o Gulag perante tudo isso?
O poder foi a única paixão comunista. Para o conquistar ou preservar,
os comunistas estiveram dispostos a tudo. Pactuaram com os nazis,
negociaram com os americanos, adoptaram até o capitalismo (na China, por
exemplo). Houve só uma coisa a que os regimes comunistas nunca se
adaptaram: a democracia liberal. A pluralidade, a discussão, a
alternância, o império da lei eram naturalmente incompatíveis com a sua
concepção de um Estado absoluto e “científico”. E foi o encanto desse
poder e a ilusão das suas possibilidades que desde 1917 predispuseram
tanta gente a fechar os olhos à verdade e a deixar-se “enganar”. Não nos
enganemos nós, portanto, sobre o verdadeiro encanto do comunismo
soviético, porque se o objecto desse encanto morreu, não morreu a
predisposição da humanidade para se deixar encantar.
Em Portugal os fósseis comunistas ainda brilham no escuro e enganam néscios com os mesmos mitos.
Avante desta semana: