José Milhazes, um comunista arrependido que em 1977 ainda acreditava em amanhãs a cantar na URSS, escreve assim sobre Trotski, o herói da canalha do BE, liderada por Francisco Louçã, um dos conselheiros de Estado do estado a que chegamos:
"Nas vésperas do centenário da revolução comunista de 1917, alguns
políticos e académicos tentam convencer-nos que, se Lev Trotski vencesse
a guerra pelo poder depois da morte de Lenine, os destinos da União
Soviética teriam sido outros. É uma afirmação que em nada corresponde à
verdade e apenas visa branquear um acontecimento que deu início à morte
de milhões de pessoas. O teórico do “terror vermelho” não iria ser mais
tolerante ou aberto do que o ditador Estaline.
“Mesmo na preparação da Revolução de Outubro, ao passo que
Trotski insistia na necessidade de respeitar a legalidade soviética –
era o presidente do Soviete de Petrogrado, em que tinha sido formado um
Comité Militar Revolucionário CMR), a que obedeciam os sovietes de
soldados –, Lenine preferia uma simples decisão partidária. Acabou por
ser vencido nesse tema, sendo o Comité Militar Revolucionário, e não o
partido diretamente, a organizar a insurreição na noite de 25 de 25 para
26 de Outubro (ou de 6 para 7 de Novembro no calendário ocidental)”, escreve Francisco Lousã, professor catedrático do ISEG e teórico do Bloco de Esquerda.
Como se depreende das palavras deste académico, Trotski era um líder
mais democrático e legalista do que Lenine, o que é pura falsificação da
história tendo em conta os factos posteriores.
Primeiro, o CRM não passava de um órgão dependente e manipulado pelo
Partido Social-Democrata Russo (bolchevique), por isso essa medida de
Trotski visou apenas “legitimar” mais um pouco o golpe de Estado (nome
que os bolcheviques deram inicialmente à revolução) desferido não contra
o czarismo (Nicolau II já havia renunciado em Março de 1917), mas
contra um governo provisório democrático que pretendia convocar uma
Assembleia Constituinte para traçar o rumo da Rússia. Recorrendo a um
paralelo, pode dizer-se que se a extrema-esquerda tivesse vencido em
Portugal a 25 de Novembro de 1975, este golpe seria considerado por ela
uma revolução contra o 25 de Abril de 1974, que não teria passado para
os comunistas de uma “revolução burguesa”.
O mesmo académico fala de “legalidade soviética”, sem explicar o que
isso é, porque simplesmente não existiu também por obra de Trotski e
companhia.
À frente do CMR, Trotski impunha assim a sua “legalidade”: “Dizem que
não se pode estar sentado nas baionetas. Mas sem elas não podemos
passar. Precisamos da baioneta aí para estarmos sentados aqui… Toda essa
canalha pequeno-burguesa que hoje não é capaz de se colocar nem de um
lado, nem de outro, passará para o nosso lado quando souber que o nosso
poder é forte… A massa pequeno-burguesa procura força a quem
sujeitar-se. Quem não compreende isto, não compreende nada no mundo,
muito menos no aparelho de Estado”.
Entretanto, a 21 de Novembro de 1917, o Comité Militar Revolucionário
cria uma “comissão para o combate à contra-revolução”, um antecedente
da tenebrosa polícia política soviética Tcheka, NKVD, KGB. Por ordem de
Trotski, o CMR encerrou uma série de importantes jornais russos, sempre
em conformidade com a “legalidade soviética”.
Mas para os que não compreenderam ainda este conceito, Trotski
explicou-o bem em 17 de Dezembro de 1917: “Devem saber que dentro de um
mês, o mais tardar, o terror tomará formas muito fortes a exemplo dos
grandes revolucionários franceses. A guilhotina, e não só a prisão,
espera os nossos inimigos”.
O professor Louçã “esqueceu-se” também que o conceito de “terror
vermelho” foi formulado por Lev Trotski na obra “Terrorismo e
comunismo”, como “arma empregue contra a classe condenada à morte, que
não quer morrer!”.
Claro que toda esta retórica cruel pode ser “justificada” com a
necessidade de derrotar os “inimigos de classe”, a burguesia, mas o
facto é que, durante a mortandade que foi a guerra civil (1917-1922), as
teses defendidas por Trotski serviram para esmagar também as forças de
esquerda que ousavam criticar o bolchevismo. Este já não precisava de
aliados.
O levantamento de Kronshtadt, de 26 de Fevereiro de 1921, foi
realizado por marinheiros de várias correntes políticas de esquerda,
nomeadamente militantes que tinham abandonado o partido bolchevique e
anarquistas.
Eles não exigiam a restauração do capitalismo, mas apenas eleições
livres para os Sovietes, liberdade de expressão e imprensa para
“operários e camponeses, anarquistas, partidos socialistas de esquerda”.
No fundo, eles queriam que fosse respeitada a palavra de ordem lançada
por Lenine em 1917: “Todo o poder aos Sovietes!” e fosse posto fim à
“ditadura dos bolcheviques”.
E qual foi a resposta do dueto Lenine-Trotski? O esmagamento
implacável da revolta, com um resultado que se iria tornar habitual na
história soviética: milhares de mortos e de feridos de ambos os lados.
Depois, os vencedores, para darem mais uma lição aos que ainda não
tinham compreendido a “legalidade soviética”, fuzilaram 2103 pessoas e
6459 foram condenadas a diversas penas de prisão.
Por isso as tentativas de branquear Trotski em nada diferem das de
branquear Lenine ou Estaline. Todos eles viam o futuro da URSS sem
democracia, sem as mais elementares liberdades, embora estivessem
escritas em todas as constituições soviéticas.
Lev Trotski pode-se ter mais tarde arrependido de muitos dos seus
erros (crimes), mas já estavam feitos, e de forma metódica e consciente.
José Neves, professor da Universidade Nova de Lisboa, escreve: “Comunistas
como Trotski, por exemplo, viram logo no estalinismo a antítese de
Outubro. Em 1936, antes mesmo dos terrivelmente célebres Processos de
Moscovo, já escrevia um livro sugestivamente intitulado A Revolução
Traída”. Ora, a revolução comunista não foi traída, mas continuada
da única forma possível: através da violência. Sem a repressão o regime
soviético não sobreviveria muito tempo. Prova disso foi que a URSS ruiu
logo que Mikhail Gorbatchov permitiu uma frincha no sistema repressivo.
Branquear a revolução comunista significa justificar o fim dos mais
elementares direitos humanos em prol de uma utopia que teve sempre
resultados tenebrosos, independentemente do país onde se tenha tentado a
sua realização."