Na Antena Um, à hora de almoço tardio, uma entrevista com José Niza recordou um passado distante e o reflexo do que somos socialmente por força da influência de alguns notáveis que marcaram as últimas décadas.
José Niza veio da Covilhã, nos anos cinquenta, para Coimbra. Estudar. Aí conheceu o meio artístico e musical, designadamente o fado coimbrão, feito de serenatas na Sé Velha e com os velhinhos fadistas da academia, os Bettencourt e os Machados Soares. Ao mesmo tempo conheceu um novato nas lides, José Afonso que em pouco tempo passou do fado mais coimbrão para a balada socialmente esquerdizante, acompanhado de Adriano Correia de Oliveira e outros que se lhes seguiram.
No meio estudantil e musical destacavam-se outros artistas diletantes, entre os quais um certo Rui Ressurreição e um tal Proença de Carvalho conhecido então pela incipiente habilidade em baixar notas instrumentais.
José Niza conhece-os a todos porque com todos conviveu, incluindo “o Daniel”. Desse leque de conhecimentos que passou depois para Lisboa e o meio artístico-musical, nasceu o movimento dos baladeiros e os discos que precederam o acontecimento do 25 de Abril de 74, a par dos festivais de cançonetismo com touradas e até depois do adeus. “Isto está tudo ligado” disse José Niza no programa.
É notório e publicamente reconhecido que esses artistas eram todos de Esquerda, incluindo comunistas, extremistas da esquerda e eventualmente socialistas democráticos, antes do socialismo ser metido na gaveta. José Niza, também médico estava entre estes. Manuel Alegre também, esse expoente tonitruante da vacuidade intelectual. E conta Niza que conheceu o Cenoura quando foi para Lisboa e entrou nas lutas estudantis dos anos sessenta. O Cenoura era Jorge Sampaio.
Eram todos de oposição ao regime de Salazar/Caetano que combateram nas canções, nas letras, nos espectáculos, nos discos.
Para além deste panorama artístico-musical que se reflectia em programas de rádio especializados e já orientados por afectos à mesma luta “antifascista”, havia toda a caravana que passava tranquila, na televisão da noite e no rádio das horas quase todas, dedicadas às “donas de casa” ou aos “serões para trabalhadores”. O triste fado, o cançonetismo que aqueles prosélitos da luta antifassista classificaram depreciativamente como nacional ( João Paulo Guerra) e os ídolos da bola, do ciclismo e de outras modalidades, não foram suficientes para relegar os jovens turcos da oposição ao regime para as franjas da irrelevância social.
Nos jornais, quase todos de oposição, tirando os oficiosos do regime, os baladeiros e os vários cenouras da luta política escreviam em parábolas mas sem grandes enigmas nas entrelinhas. E conspiravam politicamente, sendo presos alguns deles por actividades subversivas contra a legalidade vigente.
Ainda assim, uma cantiga como “Venham mais cinco” tornou-se um êxito em 1973 e as canções de Sérgio Godinho, fugido à tropa, em França, eram sucessos de audiência radiofónica nos programas certos.
Com o advento do 25 de Abril e a liberdade de reunião, associação e a democracia ocidental constitucionalmente conquistadas, quem tomou conta do discurso oficial e, como agora se diz, da narrativa histórica e social?
Aquele grupo de jovens turcos que saíram de Coimbra e se juntaram aos de Lisboa, formaram partidos, entraram em governos, redigiram leis e fizeram a Constituição de 1976. Denominador comum: a ideia de Esquerda, de igualdade e o antagonismo ideológico-político ao capitalismo nacional da CUF, dos Melos e Champallimauds, à famigerada “Direita” e ao “condicionalismo industrial”; às famílias ligadas ao antigo regime e a tudo o que religasse o “obscurantismo” de 48 anos de “repressão fassista”. Este discurso perdura há décadas no nosso meio social e mediático.
Durante mais de uma dúzia de anos este pathos e este ambiente intelectual foram as pedras angulares do novo regime saído do 25 de Abril de 74. Nessa dúzia de anos fomos ajudados pelo FMI duas vezes, porque quase entramos em bancarrota, mas a ideologia que lhe subjaz e a intelectualidade antifascista dos vários cenouras da nossa política que são quem a suporta, nunca assumiu os encargos das dívidas ideológicas. Têm sempre razão, continuam convencidos da superioridade moral da aparência que ostentam e continuam a senda baladeira da vida para além dos défices.
Depois dessa dúzia de anos de experiência de um cripto-comunismo cientificamente frustrado lá entramos no concerto das nações europeias e começou outro regime.
Ora, quem são as novas figuras do novo regime democrático? Quase as mesmas de sempre, noutras circunstâncias, mas com preponderância daqueles que surgiram das lutas estudantis dos anos sessenta.
As circunstâncias foram alterando ao longo dos anos e as empresas que produzem já não são todas do Estado que aqueles tinham garantido para si e para os seus, mas ainda assim permanecem com acções suficientemente douradas para os cenouras lá porem os filhos.
A alta-finança dos bpns voltou ao que era dantes e com novos arrivistas, incluindo alguns baixistas da Covilhã e sem a vigilância e controlo éticos do antigamente. São eles, os novos senhores que ocupam as poltronas altas da administração em assembleias gerais. E que acumulam às dezenas num exercício periclitante de tempo indisponível.
Como o ensino era a pedra de toque do obscurantismo fassista, a nova ideologia tratou de o democratizar à sua maneira: universidades em barda, privatizadas por alguns próceres do ensino público, vindos do antigamente e aproveitando a boleia da democracia para formarem cooperativas em que os lucros eram só para alguns e os prejuízos para todos. A qualidade do produto? Parece que um certo Marques Mendes foi professor universitário. E no ISCTE há vários Mendes. E noutro estabelecimento até um João Soares deu aulas. É preciso mais exemplos ou a meia-palavra de Rui Verde basta para o entendimento do panorama geral? No jornalismo caseiro já há escolas próprias e com os professores formados na Columbia da RTP...
A geração dos baladeiros, já integrados depois do apocalipse da queda de alguns muros, deixaram de se fazer ouvir como antigamente mas não marcaram nenhuma posição de relevo ideologicamente marcante. Foram absorvidos pelo vórtice da sua própria inconsequência e nem sabem como aconteceu.
Convertida aos novos valores do dinheiro fácil de propinas em turbo aceleração na profusão de escolas disseminadas por todos os cantos e esquinas da democracia participativa, alguns deles e seus rebentos prosperaram nesse meio.
O resultado de tal mistela apressada o que poderia ser, afinal? Uma geração medíocre, sem grande visão política é o que temos à vista e o vice-reitor da Universidade Independente denunciou: “a maior parte da geração actual da política veio de universidades privadas.”
Quem é que as formou? Quem ensina nelas? Com que programas? E com que resultados?
Isto anda tudo ligado, de facto.