sexta-feira, abril 10, 2009

A lei mal vestida

O penalista de Coimbra, Costa Andrade, conforme artigo de página, hoje no Público, entende que o escrito do cronista-jornalista do Diário de Notícias, João Miguel Tavares, é uma "crítica criminalmente tolerável e lícita. "
E que razão específica subjaz a este entendimento, quando sabemos que o primeiro-ministro fez queixa-crime contra o mesmo, por entender aparentemente o contrário?

A explicação do penalista é esta:

"Porque se trata de juízos de valor, a fronteira do criminalmente tolerável só é ultrapassada quando a crítica, pela sua mensagem e pela sua roupagem ( deliciosa, esta expressão...) assume a forma de um insulto já incompatível com a dignidade humana."

Esta formula liberatória encerra já, em si mesma, uma carga semântica e até semiótica que necessita de grande exegese. Por isso, como é típico em Direito, dá sempre pano para grandes mangas de argumentos a contrario. A "dignidade humana" compreende a proibição de imputação de suspeitas de corrupção a um qualquer político, por exemplo?

Vejamos o que diz o artigo do Código Penal em causa e que Costa Andrade ajudou a redigir e aprovar, desde 1982 e que se mantém no essencial, os seus elementos constitutivos.


Artigo 180.º
Difamação
1 - Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.
2 - A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.
3 - Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31.º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.
4 - A boa fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.


O que mudou ao longo dos anos, foi a moldura penal ( passou dos 50 dias de multa iniciais para os actuais 240) e foi ainda capada num segmento importante: o que dizia inicialmente que não seria punida a conduta para realizar "qualquer outra justa causa" ( por exemplo, a liberdade de informar ou manifestar opinião publicada). Retirou-se por outro lado, da prova da verdade dos factos, a restrição decorrente da condenação por transição transitada em julgado ( o legislador atendeu às demoras na justiça...).

Ora, em duas dúzias ( exactamente 24) de alterações ao Código Penal, ao longo destes anos, nenhuma delas entendeu como importante, a definição mais rigorosa do teor do artigo, seja em termos dogmáticos, seja em termos de ajustar inúmeras decisões jurisprudenciais, mormente do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que continua a condenar o Estado português, por violações da liberdade nesta matéria.

Costa Andrade, apesar daquelas declarações extraordinárias que verte em parecer, também não se tem preocupado em demasia com o assunto. A coisa rola, vai havendo queixas por questões de lana caprina que envolvem políticos em véspera eleitoral; o Ministério Público lá vai entretendo o tempo com esses inquéritos, com acusações que geralmente que acompanha ( dá muitissimo mais trabalho arquivar estas coisas) e deixa-se assim para o virtuosismo dos advogados e pareceres catedráticos, o desenrolar judicial destes assuntos. As decisões jurisdicionais têm sido uma espécie de lotaria, onde por vezes o ganhador da primeira mão, perde fragorosamente na segunda, em vitórias pírricas.

Aos políticos em fase de táctica pré-eleitoral, os casos rendem melhor um pouco: enquanto o pau da acção vai e vem, folgam as costas da imagem pública.

Então, a pergunta que se impõe:

Se Costa Andrade acha o que acha e não é novidade achar, porque não se alterou a lei, subtraindo à sua catalogação, o elemento relativo aos juízos de valor? Estão à espera de quê?

Mais pareceres?

PS. Como se vai tornando notório, estamos sempre a esbarrar com o conceptualismo dos professores de Coimbra. Já é tempo de se conhecerem melhor um pouco. São poucos, dois ou três ( Figueiredo Dias, Costa Andrade e Faria Costa), com alguns discípulos ( incluindo a directora do CEJ, Anabela Rodrigues, assistente em tempos, de Figueiredo Dias) e escola de formação de inúmeros juristas, advogados e magistrados.
Todos ganharíamos em conhecê-los um pouco melhor. O que pensam da sociedade, do Direito Penal, das soluções que adoptaram para as leis que o poder legislativo acabou por aprovar.
Coimbra ainda é uma lição?
Às vezes, não parece. Segundo contam os jornais de hoje, outro professor de Direito de Coimbra, Vital Moreira, agora de braço dado com o poder socialista que está, considera ( pelos vistos escreveu no seu blog, mas perdi-lhe o endereço) que um político pode queixar-se criminalmente destas putativas ofensas à honra.
Não é da escola de direito penal de Coimbra, certamente.

Questuber! Mais um escândalo!