Fernanda Palma, penalista deste sistema, com cátedra na Faculdade de Direito de Lisboa, defende na sua crónica no Correio da Manhã de ontem, a “objecção de consciência” aos apelos populistas, vindos das “ pulsões populares mais obscuras”.
A ideia básica que subjaz à crónica subtil, parece-me simples de enunciar: os princípios elementares dos direitos humanos, conquistados já em séculos de liberalismo que arredaram “práticas inquisitoriais e arbitrárias, de discriminação e abuso político”, são um património da Humanidade.
No campo dos reaccionários ficam todos aqueles que “recorrem a ´técnicas jurídicas` expeditas para violar, na sua substância, os princípios elementares.”
Esta conclusão da crónica é precedida por uma incursão histórica no “processo de Jesus”, para lidar com o tal populismo que afinal de contas, segundo a cronista, teria sido o verdadeiro responsável pela morte de Cristo.
Seguindo ao lado de tal conclusão, teríamos que ponderar, com Fernanda Palma, que Jesus Cristo, hoje em dia, não seria condenado, se em causa se aplicassem os referidos “princípios elementares” derivados dos séculos iluministas e obrigatoriamente incluindo o jacobinismo, na sua vertente mais humanizadora e anti-clerical.
Fernanda Palma considera que hoje cresce na sociedade um “apelo populista”. Como é costume nas suas crónicas, remete hipoteticamente para um acontecimento político da actualidade, sem o enunciar, como seja, neste caso, o discurso do CDS sobre a matéria. Sem explicar exactamente o seu propósito específico, de pendor eventualmente político-prático, tenta depois glosar o assunto e desfazê-lo conceptualmente, mas sempre com o tal apego declarado aos “princípios elementares” do Humanismo, cuja excusividade entende garantida. Não é a primeira; não é a segunda e provavelmente não será a última: um jogo político obscuro e de portas travessas, é do que se trata.
Poderia dizer que esta é das tais crónicas que se engole a si mesma, na sua argumentação subtil.
Apelar ao Humanismo já secular e liberal, para combater o alegado populismo, só tem um efeito útil e prático, no contexto histórico referido ao que vivemos: um maior laxismo nas leis penais do que aquele que existe; uma maior tolerância para com os bandidos e criminosos e uma maior aproximação aos anti-valores travestidos de conquistas da Humanidade. É uma autêntica inversão de valores, apresentada como o nec plus ultra dos “princípios elementares”.
É esta mentalidade nada subtil que perfila o entendimento do direito penal e processual, actualmente em uso no burgo.
Em nome do Humanismo grandioso e tardiamente pandectístico, combate-se o populismo. Este, se verificado nas suas manifestações práticas, assenta apenas numa reacção aos desmandos sociais e abusos contra qualquer autoridade, em crescendo social. Apresenta factos contra argumentos e nem assim se vê reconhecido, porque os conceitos daqueles engolem os factos que aparecem.
Parece-me demasiado simples de entender este fenómeno, para quem se dispuser a sair da redoma do conceptualismo penal, mesmo sem abandonar um átomo dos referidos “princípios elementares” de origem universalmente convencionada.
Os direitos, liberdades e garantias proclamados como “princípios elementares”, concedidos aos suspeitos e acusados, devem equilibrar-se com os mesmos direitos, liberdades e garantais de quem se encontra na posição de vítima desses mesmos sujeitos garantidos. E se algum equilíbrio se concede, deve sempre favorecer a ordem natural das coisas, entendida por todos, incluindo populistas e humanistas.
Este modo de conceber a justiça que assenta precisamente num dos conceitos mais aperfeiçoados, relativo ao que é devido a cada um, será certamente muito mais equilibrado e humanista do que a concepção que sobreleva sempre o lado escuro do mal, acabando por o proteger objectivamente, em função de um receio difuso de sobrepenalização desse mal.
À força de tanta defesa da diferença e do “que não tem juizo”, leva-se à frente do humanismo, toda uma humanidade de vítimas a quem se garante que nunca lhes será feita justiça.
Esta concepção de direito penal e direitos, liberdades e garantias, tem feito escola nas últimas décadas em Portugal, para além do tolerável e precisamente devido a esta mentalidade.
Ninguém se lhe opõe verdadeiramente por escrito ou em debate público, porque o politicamente correcto não o permite.
Tal como se tenta matar alguém politicamente, colando-lhe o rótulo de “fascista”, assim se elimina do debate público, com uma roda de “populista”, todo aquele que defenda o que todos percebem: para um verdadeiro humanismo, os direitos das vítimas, enquanto pessoas, são iguais, pelo menos, aos direitos de quem agride ou transgride. E não é possível equilibrar esses direitos se se concedem maiores prerrogativas a estes últimos, dando-lhes as maiores possibilidades de impunidade.
Quem assim pensa ou age, julgando defender inocentes, está verdadeiramente a castigá-los.
E porquê? Que razão substancial e profunda, presidirá a este pensamento unificado na opinião publicada do direito penal português?
Só vejo uma razão: por causa do pecado capital que é a soberba. A mais pérfida que é a intelectual e de supremacia.
Fernanda Palma ao citar Gilles Deleuze no seu escrito, introduz essa nota espúria e ao mesmo tempo intrínseca ao discurso: o do desejo de poder, através do intelecto e das ideias. Para Deleuze, a filosofia inventa conceitos. Para os nossos filósodos do direito penal, o conceito básico e fundamental assenta nesse Humanismo difuso que tende a excluir as vítimas, favorecendo os algozes.
Deleuze teria recusado ver nesta acepção uma afloração de um desejo edipiano: matar o pai da autoridade.
Como exemplo acabado do efeito prático desse humanismo apostado em combater o populismo, pode ver-se este video, sobre um acontecimento anódino, ocorrido em França, numa carruagem de metro.
É um exemplo perfeito do resultado de muito humanismo: a vítima acaba por ser qualquer um, geralmente o mais fraco e isolado.