O problema da Esquerda com a história e a memória de Salazar fica aqui bem explicadinho neste escrito publicado no jornal i de hoje.
Durante grande parte do séc. XX a Esquerda foi ditadura. No Leste, no oriente chinês e no sudoeste asiático; em Cuba e noutros locais do planeta. Ditadura sanguinária em muitos casos, com milhões de mortos na contabilidade do terror, com semelhança apenas no regime nazi.
A Esquerda portuguesa com destaque para o partido comunista apoiou quase sempre os regimes de ditadura de leste. A Esquerda "democrática" do PS não apoiou e demarcou-se em devido tempo, mas apoiou sempre os comunistas portugueses que subserviam aqueles regimes, com a excepção de alguns meses no Verão de 1975, muito por causa da própria sobrevivência política e eventualmente até física.Que ninguém duvide que se o PCP tivesse ganho em 25 de Novembro as prisões em massa dos "reaccionários" seriam algo que depressa fariam esquecer as prisões "fassistas", Tarrafal incluído.
Aqueles factos históricos são sistematicamente obliterados em escritos do género supra. Para além de outro com significado particular para nós, portugueses.
De 1968 a 1974 Portugal foi salazarista? Não, certamente. Então o que foi? Um país com uma guerra no exterior das províncias que administrava desde há mais de quinhentos anos. As "colónias" como lhes chamam os esquerdistas em geral. Estes apoiavam activamente os inimigos do país e que nos guerreavam, em nome de um internacionalismo proletário, de uma solidariedade entre povos comunistas.
O Portugal de final dos anos sessenta, neste contexto, teria possibilidade em se tornar uma democracia de tipo ocidental e de caminho restaurar liberdades abolidas décadas antes, como a de associação, reunião e manifestação?
Talvez e alguns tentaram-no. Marcelo Caetano tentou-o. Será justo apelidarem-no como ainda fazem hoje os esquerdistas em geral, de "fassista"?
Não sendo uma democracia, Portugal tinha as instituições mais próximas de uma ditadura, como fora no pós-guerra com Salazar.
Mas... a partir de 1968, ainda em vida de Salazar, mas sem o exercício do poder por este, houve um esforço em prol de maior democraticidade no país, o que aliás é consensualmente aceite.
Então quem é que sistematicamente desvirtua este panorama confundindo e misturando regimes que já eram substancialmente diversos, mesmo que com características semelhantes?
A Esquerda, em geral. Incluindo a "democrática".
E no entanto, nessa mesma época, no mundo da Esquerda, os regimes políticos eram muito, mas mesmo muito mais ditatoriais e brutais que jamais o Portugal de Salazar o foi.
Como é que se resolve este problema da Esquerda com o comunismo e a ditadura em geral?
Não resolve. Esconde-se a questão, mente-se às pessoas e critica-se um regime, como o de Salazar que nem sequer tinha comparação em brutalidade e repressão como o de uma RDA para não ir mais longe, até à China de Mao, paraíso dos mrpps cá do sítio.Ou da Albânia, outro sol na terra.
A Esquerda de cá pretendia por outro lado, substituir o regime de Salazar por um regime desse tipo, fazendo crer às pessoas, como ainda continuam a fazê-lo que seriam originais e que o seu socialismo seria sempre de rosto humano e diferente daqueles que nunca foi diverso do que era em nenhum lugar do mundo.
Tais factos eram conhecidos nessa época, nos anos sessenta, como eram nos setenta e décadas seguintes. Tais verdades, como punhos, não foram suficientes para desmobilizar politicamente os eleitores comunistas. Pessoas com um módico de inteligência continuam nos dias de hoje a defender as mesmas receitas económicas, tendo por base as mesmíssimas doutrinas e princípios programáticos e até tácticas de subversão.
A esquerda "democrática" por seu lado sempre andou em tandem oposicionista com a "não democrática", tirando uma ou outra táctica de conveniência.
Como a táctica de conveniência muda na altura em que assumem o poder, a Esquerda não democrática vocifera então contra a traição da Esquerda democrática que defende uma coisa no discurso e pratica outra quando está no governo. Tem sido isto há décadas para cá e sempre que se anuncia uma ofensiva da "reacção", como se a "reacção" ainda fosse a que foi apeada em 25 de Abril de 74, lá vem a unidade de Esquerda nas greves, na contestação e na táctica comum para conquistar o poder.
É nesta tensão dialética que as duas esquerdas se mantêm na liça política. Uma, a genuína e detentora da patente de Esquerda, comunista e a outra miscigenada e democratizada através do engavetamento do socialismo, sempre na corda bamba do ser e do não-ser. Assumindo as regras do jogo democrático que aqueloutra detesta secretamente, embadeira valores como o das regras do jogo do mercado livre e dão água pela barba aos genuínos que se sentem sempre defraudados nas expectativas.
É esse o problema insolúvel da esquerda.