sexta-feira, junho 17, 2011

Ética e moral na magistratura

O caso do copianço no CEJ volta hoje a dar que falar. O relato do jornal i, neste aspecto é exemplar. O new journalism de Adriana Vale não lhe autorizou desta vez chamar cábula seja a quem for mas apenas uma leve referência a um “puxão de orelhas” dado pela opinião pública, perdão, publicada, por jornalistas do nouveau roman da sociedade portuguesa.

Parece ter concluído, apesar do puxão de orelhas induzido que afinal “era um teste a que os auditores de justiça não tinham dado muita importância.” Ou seja, uma questão de lana caprina erigida à categoria de imperativo categórico ligado à ética e moral do magistrado, mai-la deontologia.

Para Marinho e Pinto que não faz nada por menos, “o assunto não traz notícia nem rasgos de inspiração” mas serve-lhe para atacar a magistratura, impune e alarvemente. Para o observador Boaventura S.S. o caso serve-lhe para levar a água do CES ao moinho do CEJ e introduzir a “cidadania” para os magistrados compreenderem “ a sua função social” e desenvolver outras “competências” como “a capacidade de contextualizar os fenómenos sociais” ( Público de hoje).

Portanto, o caso foi relegado pelo mágico efeito mediático para o terreno escorregadio da moral e da ética dos magistrados, com a deontologia à ilharga.

À míngua de factos objectivos sobram as intenções processadas pelo jornalismo caseiro. O teste tinha pouca importância? É fruto da “tolerância excessiva do CEJ” ? ( Sol de hoje) E que importa isso, se há o escândalo da anulação por efeito de copianço generalizado? É esse o núcleo fundamental do assunto e por isso o escândalo recentra-se nesse campo magnético que atrai os comentadores mais encartados em lições de moral e ética. Ferreira Fernandes, claro, ontem no D.N. : “trafulhas”, “aldrabões”, futuros vendedores de segredos de justiça, foram os mimos deste expoente na croniqueta deontológica e que no outro dia, no mesmo sítio, afiançou a inocência de Strauss-Khan, baseado em factos que soube por infusão mediática. “Uma vergonha”; uma “prevaricação inadmissível “ em magistrados em formação acelerada, são os epítetos dos comentadores generalizados na ética e moral mais impoluta e enxuta. Graças a Deus que temos cronistas e opinativos de pluma a caprichar em tais virtudes de carácter em que a hipocrisia é apenas um defeito menor.

Vejamos.

Em meados dos anos oitenta o CEJ era dirigido por Laborinho Lúcio e mais uns tantos juízes, entre os quais um tal Torres Paulo ( de fraca memória, já agora) e também Armando Leandro, hoje presidente da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens.

Os testes de admissão permitiam a consulta de manuais e catrapázios e por isso alguns dos futuros auditores carregavam literalmente malas de livros para as provas. Copiar, pelos outros presentes, naturalmente, era eticamente inaceitável até porque as respostas não eram de cruzinha em quadradinho. Mas podia copiar-se o que vinha nos livros. Plagiar à vontade e sem efeito negativo acoplado. A correcção das provas, essa, ficava a cargo dos professores, todos da magistratura e com provas dadas na prática. Quem melhor sabia o que vinha nos livros tinha maior nota e tal era importante porque todos queriam ser juízes e as vagas não chegavam para tanto. E quem ia à oral mostrar o que sabia por escrito tinha que se desunhar para provar que não cometera mero plágio.

Portanto em termos éticos e deontológicos a moral era esta que se expôs: plagiar sim, mas com conhecimento de causa. Tal como fazem os magistrados que aplicam a lei e o direito no dia a dia dos tribunais.

Divergir deste fenómeno para o fundamentalismo ético da probidade asséptica como fazem alguns comentadores cheira a esturro de suspeita e a enviesamento conceptual. A honra, probidade e honestidade de um magistrado são precisamente qualidades que podem ter residência fixa no carácter de qualquer pessoa. Um magistrado só por o ser não é mais nem menos probo e honesto que outro cidadão bem formado. O que o distingue dos demais, nesse aspecto, é a formação moral recebida como acervo da herança educativa e a responsabilidade integrada na personalidade depois de apreendida. E nada mais.

Por isso mesmo o bastonário Marinho e Pinto, no Sol de hoje refere que “ Em Portugal temos o paradigma de que quem é magistrado é honesto. Isso é mentira, são tão honestos ou desonestos como o comum das pessoas. Embora o objectivo de Marinho seja, mais uma vez, denegrir a magistratura in totum, propósito que se cometeu desde que foi eleito para bastonar , captando votos de modo singular e curioso que certamente não conseguirá explicar devidamente, para não se lhe ver a trave que ostenta no olho maroto, a verdade é que a frase colhe razão.

A este propósito, no CEJ dos primórdios, ou seja nos anos oitenta, os auditores de justiça não auferiam o direito de viajarem nos transportes públicos “de borla” e mediante a simples amostragem de um cartão com tarja verde-rubra, como acontecia então ( e agora?) com a Polícia Judiciária, por exemplo, ou com os magistrados de carreira, entre outros que auferiam dessa regalia antiga e pacífica e já acabada há tempos com os governos que passaram.

Como o livre-trânsito era o tal cartão com tarja verde-rubra, e os auditores de justiça tinham também um cartão com essas características coloridas em tarja, alguns poderiam sentir a tentação de o mostrar aos revisores condescendentes e do tempo do PREC que abundavam em eléctricos, autocarros e comboios suburbanos. O cartão do CEJ, apesar de não conferir esse direito, fundia o parecer com o ser e confundia o revisor.

Por isso mesmo , Laborinho Lúcio com uma sabedoria que manifestamente as pessoas que agora mandam no CEJ não têm, contava nas aulas uma história hipotética, possivelmente inventada e passível de atentar contra a ética da verdade, de um auditor que tinha sido apanhado na fraude de viajar sem bilhete apresentando o cartão de falso livre-trânsito. E tal era remédio santo para as tentações de prevaricadores em potência menos abonados em ética e dinheiro.

Não obstante, o ensinamento era assim. Não derivava de grandes discursos fundamentalistas ou de aulas de “cidadania” para conferir a “capacidade de contextualizar os fenómenos sociais “.

A sabedoria de Laborinho residia nisto: não adianta tentar reeducar o carácter de cada um. É mais importante perceber se o carácter de um magistrado se adequa à função e prevenir as consequências de uma má-formação congénita.

Mas para tal tarefa não há discurso moral que possa valer. E ao mesmo tempo Laborinho recusava a realização de testes psicotécnicos de avaliação da personalidade. Fiava-se na experiência e no bom senso que afinal são os melhores guias, sem lei.

Portanto é muito razoável supor que temos como magistrados em todos as instâncias, pessoas cujo carácter, honra e probidade foram ensinadas nos bancos da escola primária, nos da igreja, na catequese que já não há, à mesa de refeições familiares, em convívio com colegas e amigos e assim por diante. Principalmente assim e também por efeito de personalidade. Aquela coisa de se entender instintivamente que tal pessoa é “boa pessoa”.

E não vejo alternativa a este método de recrutamento de magistrados. Por isso mesmo, erigir em modo fundamentalista, o episódio do copianço putativo como exemplo de mau carácter de magistrado é pura e simplesmente mistificar um problema que existe e sempre existiu, embora num grau e patamar muito diversos.

Questuber! Mais um escândalo!