sábado, junho 18, 2011

Os indignados da ética e a linguagem da fraude

Ainda o caso do “copianço” no CEJ. No Público de hoje, Vasco Pulido Valente vitupera o comportamento corrido a 10 valores dos auditores de justiça assim:

Na medida em que, para qualquer pessoa de carácter, copiar num exame constitui um roubo e uma fraude, o CEJ estava estritamente obrigado a promover a respectiva expulsão e a garantir que nenhum deles jamais poria um pé num tribunal.”

Pronto. Assim. Tão radical na ética quanto um Marinho e Pinto desenculatrado na indignação postiça.

No Expresso de hoje sobressaem mais indignados: “Um comportamento destes é indigno. Ou fazem novo teste ou não servem para magistrados.”- Bravo Serra, vice-presidente do CSM.

“Nós julgamos os outro, o nosso comportamento tem de ser excepcional.”- Ivo Rosa, juiz presidente dos juízos criminais de Lisboa.

Segundo o jornal a situação não é inédita e ter-se-á verificado já o ano passado com testes semelhantes. Ou seja, será um hábito, entre auditores, copiar uns pelos outros. E isso porque “de acordo com uma fonte do CEJ ´vivia-se um clima de descontracção e de atribuição de pouca importância ao teste”.

Nesta simples explicação não desenvolvida, acoita-se a essência da questão vexata: No CEJ ( e nos tribunais, por suposto, no que se refere à fundamentação doutrinal das decisões) copiar é regra. Plagiar autores, obras, jurisprudência e doutrina é método. Trabalhos em grupo no qual se destacam um ou dois “barras” que sabem mais que os outros e ensinam os demais, passando informação, é vulgar, corrente e normal. Como toda a gente sabe ou devia saber. O trabalho prático dos aplicadores do Direito não é um trabalho essencialmente criativo e se bem que andamos vários séculos para fugir da expressão antiga do juiz como “boca da lei” a verdade é que é a lei e o direito que indicam as linhas directrizes da função.

Na recente decisão do presidente do STJ a propósito da certidão do Face Oculta que o PGR lhe remeteu para decisão jurisdicional, singular, única, pessoal e intransmissível, sabe-se que o presidente do STJ por carência de conhecimentos suficientes ou para maior segurança, aconselhou-se com um ou mais pares. Pediu parecer verbal. Isto não é copiar mas é trabalho em grupo, numa decisão individual. A decisão não era em colectivo. E não se diga que o caso é muito diferente porque a decisão de um juiz sobre matéria jurisdicional é solitária, individual e independente. Se um juiz não sabe teoricamente o que fazer num caso concreto como esse, a conclusão apresenta-se óbvia a esses radicais da ética da fraude: é incompetente em razão…do conhecimento.

Num grupo como o dos auditores do CEJ, a dinâmica que se estabelece, desde sempre e a partir do momento em que são admitidos a frequentar o curso de formação é a da colaboração entre todos ( agora mais todas) e isso é sumamente positivo. Quem não entende isto não percebe patavina do que está em causa. Falha um humanismo essencial à função e dá prevalência a uma ideia espúria de competição pelos melhores lugares, onde as piores características das pessoas assomam aos comportamentos mais rasteiros e vis, porque é assim que funciona a natureza humana quando fica à solta de barreiras éticas ou estas são alargadas para além do admissível.

Num grupo de futuros magistrados em formação teórico-prática, valorizar o espírito competitivo, empresarial, que nada tem a ver com emulação positiva e tudo com individualismo ultra-liberal e de feição egoísta e propícia a calcar os outros se para tal for necessário, é noção que fica bem à vista, em contraposição ao desvalor do tal “copianço”. Incentivar e valorizar a nota distintiva e que permite a opção pela carreira mais apetecida, à custa dessa competição desenfreada e reveladora dos instintos mais primários das pessoas, com reticências pessoais, mentiras aos outros, dissimulação de informação e comportamentos é mais aberrante do que conceder um 10 em comportamento a quem copiou num teste de cruzes.

Por isso mesmo, no CEJ, num teste com cruzinhas em matérias de relevância intermédia e na fase de formação teórica, no qual a condescendência dos costumes da casa, acumulada durante anos, possibilita e relaxa a atitude de ética mais radical, erigir o “copianço” como falta gravíssima ao dever de correcção e deontologia mais primários e fundamentais é exagero, dislate, disparate e escandaloso. Porém, o escândalo não é o copianço, mas a indignação postiça de muitos, emitida pelas excelências que já se pronunciaram, em função da interpretação metalinguística a que os media chamaram um figo.

Apareceram presidentes da República ( o inenarrável Sampaio, cuja ética foi sempre irrepreensível, como se sabe) magistrados ( o PGR , claro) e muitos outros. Só falta o tudólogo Sousa Tavares na página inteira do Expresso…

Quando o caso se infiltrou nos media, através da Lusa, a ideia básica é de “copianço” num teste. Ninguém na Lusa e nos media procurou saber exactamente o que era o teste, para além da menção vaga a uma matéria de investigação criminal e gestão de processo. Ninguém procurou saber a base ética ou deontológica para se lançar uma notícia sem conhecimento dos factos por inteiro. Ninguém se preocupou em determinar o comportamento ético de quem passou a informação para os media. Ninguém está interessado na ética jornalística e muito menos os suspeitos que ficam sempre na sombra da ética mais radical que exigem aos outros.

O que sobreleva nesta não-notícia é a metalinguagem inerente à noção de “copianço” e de “teste”, “magistratura”, “escola de formação de magistrados” etc.

“Copianço”, neologismo antigo sem referência no dicionário, aqui assume imediatamente um significado indigno e abjecto. O substantivo transporta em si uma tal carga negativa que todos se remetem para as salas de aula em que os alunos, sozinhos e entregues ao seu saber ou ausência do mesmo, se desunham na escrita e respostas de avaliação. O arquétipo nem oferece dúvidas ou matéria de contestação. “Copianço” é copianço e está tudo explicado na palavra fatal que nem vem no dicionário. De repente passa a "roubo" e "fraude", palavras pesadas de significado negativo, permitindo às intelligentsias o brilho na coluna onde exercitam o ganha-pão.

No Expresso de hoje, dá-se notícia de ter sido pedido a nove alunos do 9º ano que fizessem a prova de Matemática de 62. Só um teve positiva. Para comentar o facto, aparece, entre outros ( Ana Maria Magalhães por exemplo) Cândida de Almeida. E diz assim: “ O liceu era extraordinariamente exigente e a direcção era autoritária e quase desumana. Nem para o lado podíamos olhar. A nossa apresentação tinha de ser muito formal e nem meias de vidro podíamos usar. Só soquetes.”

A maioria dos comentadores do caso do copianço insere-se ainda neste arquétipo. A metalinguagem dos media funcionou, neste como noutros casos, na perfeição.

A perversão da notícia, decorrente do enviesamento discursivo e na semântica exposta evidencia também uma vontade latente: a de usar a hipocrisia como método correctivo de costumes.

Questuber! Mais um escândalo!