terça-feira, outubro 18, 2011

Portugueses de classe

O recente despacho do PGR que está sobre procedimentos protocolares dos magistrados do MºPº relativamente a titulares de órgãos de soberania e "equiparados" tem dado azo a várias interpretações cujo teor assenta num pressuposto: o de que se trata de medida cautelar para protecção de políticos entalados.
É assim que a mensagem está a circular e a redacção do tal despacho não deixa tal interpretação na margem do absurdo pelo que se torna admissível pensar que assim possa suceder.
Então aqui ficam as passagem mais significativas de tal despacho, numa redacção que lembra outros tempos de uma velha senhora que exigia muito respeitinho...

Tendo sido comunicadas à Procuradoria-Geral da República algumas situações de inobservância de adequadas regras de relacionamento institucional entre o Ministério Público e os órgãos de soberania e/ou os seus titulares no âmbito de alguns processos, considerou-se oportuno reflectir sobre a matéria, em conjunto com as Procuradorias-Gerais Distritais, concluindo-se pela necessidade de definição de procedimentos a adoptar uniformemente por todos os órgãos e serviços do Ministério Público.
Não obstante a questão se colocar em todas as áreas de actuação funcional do Ministério Público, é no âmbito da sua intervenção no exercício da acção penal que se poderão suscitar maiores dificuldades, designadamente no que se refere ao nível desse relacionamento, pois, quanto à forma, deverão, em todas as áreas, prevalecer regras ditadas, no essencial, por princípios deontológicos, éticos, de cortesia ou protocolares.
(...)
Considerou-se ainda justificável a adopção de orientações quanto à forma como as solicitações deverão ser formuladas e dirigidas àqueles órgãos, de modo a se padronizarem e uniformizarem actuações que evitem equívocos de interpretação relativamente ao objecto do pedido e ao seu fundamento legal, que respeitem regras protocolares e de cortesia e que, por outro lado, dignifiquem a própria magistratura do Ministério Público.
(...)
Sempre que num determinado processo sejam intervenientes a título pessoal titulares de órgãos de soberania (Presidente da República, Presidente da Assembleia da República, Deputados, Primeiro-Ministro, Ministros), os senhores Magistrados do Ministério Público deverão ter em consideração os seguintes procedimentos:

a) -Antes de determinarem ou requererem a intervenção processual dos mesmos, deverão apurar as concretas e específicas imunidades, impedimentos ou prerrogativas, constitucional, estatutária ou legalmente previstas, agindo em conformidade com o que do respectivo regime decorrer;
(...)
d) -Tratando-se de convocar aqueles titulares de órgãos de soberania para acto processual para cuja determinação seja competente o Ministério Público, quer esteja em causa acto para o qual tenha sido determinado o levantamento de eventual imunidade, quer se trate de acto para o qual não se encontre prevista qualquer imunidade ou prerrogativa, o respectivo expediente deverá ser encaminhado, via hierárquica, através da Procuradoria-Geral da República;

Os mesmos procedimentos deverão ser seguidos em relação aos titulares de órgãos do Estado, designadamente àqueles que gozem de imunidades, impedimentos e prerrogativas similares às de titulares de órgãos de soberania (Representante da República nas Regiões Autónomas, Presidentes do Governo das Regiões Autónomas, Deputados às Assembleias Regionais, membros do Conselho de Estado, Deputados ao Parlamento Europeu, Provedor de Justiça).

Este despacho estará em conformidade com o preceito constitucional que no artigo 13º diz claramente que "todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei"?
Por mim, duvido muito. Mas sendo o direito um mundo de interpretações não me admirava nada se concluíssem que os cidadãos que exercem cargos políticos são portugueses mais iguais que os outros...
Noutros países, mormente a Inglaterra que nem sequer tem Constituição escrita ou até os Estados Unidos, não é assim e todos são mesmo tratados de forma igual, pelo menos na aparência.
Por cá, o salazarismo deixou muitas marcas e na Justiça algumas delas ainda não desapareceram.
Considerar que os magistrados do Ministério Público na primeira instância são inidóneos para lidarem directamente com os titulares de órgãos de soberania significa o quê, exactamente? Que os mesmos não têm preparação intelectual e pessoal para convocar, ouvir, escrever o que dizem ou interpretar o que querem dizer? E significa concomitantemente que os superiores hierárquicos a têm necessariamente, só por ficarem a saber que houve uma convocatória?
Eximir estas personalidades de serem ouvidas directamente pela polícia em sede de procedimentos de inquérito significa o quê, como prerrogativa? Que a polícia que temos não tem categoria intelectual suficiente para ouvir em inquérito essas sumidades? Que deve ser-lhes garantido administrativamente um trato de cortesia acrescido ao devido aos demais cidadãos? E por que razão filosófica, democrática, institucional ou outra? Alguém consegue explicar o que o despacho não explica, para além da referência a uma inefável " dignidade imanente a qualquer órgão de soberania ou aos seus titulares" e a uma explicitação em "se considerar a exigência acrescida de protecção e salvaguarda da posição constitucional de tais órgãos e entidades" ?
Isto na prática e sem rodeios significa o quê? Que essas pessoas envolvidas em processos criminais, por vezes como suspeitos ou arguidos, merecem protecção acrescida por serem políticos de topo? É isso? Se for isso, passo e nem sequer dou um tostão furado pela ideia peregrina.
No tempo do salazarismo alguns funcionários públicos tinham a garantia de que não seriam julgados nem penalmente processados a partir de certa fase- "o Ministro do Interior, o Ministro do Ultramar e, nalguns casos, o Ministro da Economia podiam proibir o exercício da acção penal contra certas categorias de funcionários deles dependentes, por razões meramente discricionárias, invocando a garantia administrativa."
O diploma que eliminou essa prerrogativa, o DECRETO-LEI N.° 74/75 DE 21 DE FEVEREIRO era muito explícito nas razões para tal: "Por assim dizer, a administração fascista julgava e absolvia os seus próprios crimes."...
Entre os indivíduos que assinaram este diploma contam-se Salgado Zenha, Costa Brás, Vasco Gonçalves, Almeida Santos e...Rui Vilar ( sim, o da Gulbenkian).
Ora acontece, porém, que a tal garantia administrativa que nos termos do artº 3º nº 3 do D.L. 35007de 13.10.45, impedia o exercício da acção penal contra "autoridades ou agentes da autoridade" que gozassem dessa garantia, prevista no artº 412º do Código Administrativo, tinha um fundamento que Marcelo Caetano explicava no seu Manual de Direito Administrativo: só sucedia tal nos casos em que a autoridade ou agente de autoridade tivesse praticado o acto no exercício das suas funções. Caso tal sucedesse a título pessoal, não operava a garantia. Além do mais a denegação do procedimento, pelo ministério do Interior tinha que ser fundamentada. E dizia então Marcelo Caetano nesse seu manual que entre as críticas possíveis a tal medida estava a de que se "cria um privilégio de classe, conduz à denegação de justiça e atinge a independência dos tribunais." Marcelo achava que não era bem assim porque a tal garantia só protegia os funcionários enquanto tal e no exercío das respectivas funções e operava como protecção legítima da função, além de que permitia a justiça administrativa. Só se prestaria a graves abusos se fosse concedida sem as devidas cautelas...

O despacho acima mencionado não significa um regresso ao passado, certamente. Significa apenas que o passado continua a ter muita força em Portugal, na Justiça. Tem por isso razão Eduardo Dâmaso quando escreveu ( no Correio da Manhã) que em Portugal o respeitinho ainda é um problema.

5 comentários:

Gallagher disse...

Não é português de classe, mas classe de português:

Curso Rápido de Gramática

- ''Conheci um político filho da puta"- aqui “filho da puta” é adjunto adnominal.

- Se a frase for: "O político é um filho da puta", aí, é predicativo.

- Agora, se a frase for: "Esse filho da puta é um político", é sujeito.

- Porém, se o gajo aponta uma arma para a testa do político e diz: "Agora nega o roubo, filho da puta!" - daí é vocativo.

- Finalmente, se a frase for: "O ex-ministro, aquele filho da puta, arruinou o país e não só" – “filho da puta” é aposto.

Que língua a nossa, não?!

Agora vem o mais importante para o aluno. Se estiver escrito:

"Saiu de primeiro ministro e foi viver para França e ainda se acha o salvador da Nação, o filho da puta!" - aqui é sujeito oculto...

josé disse...

Estes portugueses de classe são da executiva.Ou será do executivo? Confunde-me, o género.
Aqui é uma elipse. Um tropo de linguagem como outro qualquer.

Por exemplo: Esse fils d´une pute não é a mesma coisa que cet fils d´une putain, género poético do lado das chansonettes de Reggiani.

Por mim, juro, se o encontrar a deambular nos Boulevards, sózinho ( sem o filho que não tem culpa do pai que tem) abordo-o para lhe dizer duas ou três coisas muito desagradáveis. E identifico-me para o tipo saber.

Floribundus disse...

'onorate puttane'

os 3 poderes segundo Millor
'executivo, exercicutivo, executado'
ou
'exército, marinha e força aérea'

joserui disse...

Hehe... sujeito oculto está correcto... oculto e aldrabão. -- JRF

Vitor disse...

Faz-me recordar o "Triunfo dos Porcos": todos os homens são iguais, mas uns são mais iguais do que outros.
Se atendermos ao facto do PGR exigir que as intervenções em processo dessa "classe" tenha de ser solicitada por si e se atendermos ao facto de que os juizes de instrução não têm iniciativa no processo, o que verificamos é a hipotética fuga dos tais dessa classe à sua responbsabilização criminal, também. isto porque a tal da responsabilização política é uma treta.

A obscenidade do jornalismo televisivo