segunda-feira, abril 09, 2012

O abismo dos sociólogos esquecidos

Carlos Alexandre falou ontem em "raízes" de Portugal e na necessidade de irmos às raízes para nos entendermos de novo como povo.

Este discurso é raro, não passa nos media e quando passa é rapidamente relegado para uma obscura catalogação conservadora ou, pior ainda, reaccionária, como diziam os comunistas, aliás o grupo mais conservador que existe em Portugal, mas que continua a marcar a agenda intelectual dos bem pensantes, acolitados à esquerda por um pensamento radical, jacobino e cujas raízes são estranhas ao "nosso povo", mas que pretendem à viva força enxertar na cepa, para a entortar de vez.

No Sábado, a socióloga reformada Filomena Mónica escreveu uma crónica no Expresso que merece comentário.
MFM já escreveu a sua biografia, cuja leitura me antecipava uma expectativa de perceber melhor este "nosso povo", nomeadamente o urbano, vindo da "província" nas primeiras décadas do séc. XX, para uma Lisboa que se recheou destes espécimenes sociais que a sociologia lusa nunca estudou verdadeiramente, por carência de antropólogos adequados.

Por isso mesmo, estas crónicas de fundo interessam-me.
No caso presente, MFM admira-se com a "incultura" dos reformados da sua geração que não lêem e preferem fazer renda de bilros imaginários ou jogar à bisca lambida nos bancos dos jardins públicos.
Os reformados em causa são os nascidos na década de 40 do século que passou. MFM acha que a esmagadora maioria destes novos velhos vieram do campo e nesse lugar remoto a ignorância seria a norma, com taxas de analfabetismo altíssimas. MFM estima tal cataclismo cultural nuns assustadores 70 ou 80% de incapazes de soletrar e formar frases escritas ou lidas.
MFM acha que a obra de referência destes desvalidos do saber escrito era um livro de feitiçaria, remetendo evidentemente para estigmas medievais, como modo apropriado de descrição ambiental.
MFM resume este "abismo" num conceito breve: "o analfabetismo ancestral do povo português".
Os culpados do abismo são os regimes da I República e do Estado Novo, "incapazes de educar o povo".
Educar o povo, portanto, seria o desiderato destes iluminados pela cultura que se reflecte na incapacidade de ler e entender daqueles desgraçados que apenas se interessam por telenovelas, futebol e pouco mais.
De fora fica todo um mundo fantástico que inclui os romances de Eça e as novelas de Camilo, mais o saber ouvir Schubert e poder olhar Bernini, Turner ou, mais prosaica, a nave de Alcobaça.
Esses símbolos escaparão aos reformados nascidos na década de 40, contemporâneos da autora, fazendo-os cair no tal abismo da incultura.

Dito de outro modo, esta gente ignota não tem raízes porque saiu do campo onde elas nascem. Cresceu num ambiente urbano sem referências culturais de relevo e afeiçoaram-se à "querida televisão" como a fonte de todo o saber. E é esse o abismo.
Será mesmo ou o abismo muda de sítio e estará colocado onde menos se espera?
Na década de 40 Portugal passou fome, no tempo da guerra ( principalmente em 1942) mas renasceu a partir de 47 com obras públicas, num exemplo do Keynesianismo mais puro, ou seja do socialismo corrente. Duarte Pacheco é o nome do regime e ainda hoje é lembrado.

Na década de 40, o Estado Novo tinha a sua cultura. E a sua propaganda, gizada por António Ferro e com cartazes assim que relatam factos que podem ser comprovados e desmentidos, mas não podem ser ignorados, relegando tudo para um obscurantismo medieval.

Na cultura popular, os anos 40 foram os anos de ouro do cinema português. As tais raízes esquecidas podem ainda ser vistas nesses filmes e não são aquilo que MFM conta que vê nos reformados nascidos nessa década.
O que é que a oposição comunista ao regime tinha para oferecer? Esteiros ( Soeiro Pereira Gomes), Cerromaior ( Manuel da Fonseca) Retalhos da vida de um médico ( Fernando Namora) e pouco, muito pouco mais.
A Censura era e continua a ser a justificação para a mediocridade criativa. Depois de acabar a censura viu-se que nada tinham para oferecer a não ser panfletos políticos.
Foi nos anos quarenta que Portugal abriu ao mundo cultural. A colecção da Vampiro da Livros do Brasil, com Dashiell Hammet, Agatha Christie e outros, começou aí.
Como se vê por esta imagem de um quiosque de Lisboa ( retirada de um livro de Joaquim Vieira) em Portugal nessa época lia-se tudo o que havia no estrangeiro. Em francês, inglês e espanhol. Aos comunistas de então, pergunte-se-lhes se em Moscovo havia quiosques destes...

Porém, ainda mais importante do que estas verificações factuais que desmentem aquele escrito de uma socióloga esquecida, poderemos recuar umas décadas e aterrar no imaginário do Portugal de meados do séc. XIX, o século de Eça e Camilo que escrevia para vender e sobreviver.
Como se educavam então as crianças que iam às escolas públicas e que não eram tão poucas como isso, apesar de todas as diferenças sociais existentes?
Assim, com um Manual Encyclopedico da autoria de Emilio Achilles Monteverde, cujo índice é um programa contra o jacobinismo mas ao mesmo tempo um reflexo iluminista na instrução primária naquilo que é essencial: ler, escrever e contar como deve ser.


A par disso, as normas morais dos costumes de então são perfeitamente claras e muito pouco relativas, espelhando a ideia de um Portugal cristão, com valores cristãos e muito profundos e enraizados.

Aqueles que nasceram em 1940 ainda foram educados nessas regras morais. Os que fizeram o Estado Novo sem dúvida que o foram. Terão sido as mesmas que falharam ou a evolução social e de costumes que se alterou, provocando o tal "abismo"?
E de quem é a culpa de se ter relativizado essa moral que passou a chamar-se ética e a corresponder àquilo que a lei prescreve?

Se se ler o índice abaixo pode reparar-se que não existe a palavra "direitos" entre as regras de conduta. Existe sim e muito repetida, a palavra "deveres". Será essa alteração meramente semântica ou a que provocou o "abismo"?

Não é com os estudos destas sociólogas esquecidas que compreenderemos quem somos e onde estão as nossas raízes.
Só os antropólogos que sabem História, conhecem a fundo o nosso Portugal e não se enfileiram no jacobinismo poderão responder cabalmente. Infelizmente temos poucos. Aliás, teremos algum?





Questuber! Mais um escândalo!