
Retrata uma miséria social extrema que nessa altura não era tão rara quanto isso, embora o facto de ser notícia denota a sua singularidade e o quadro é de um "neo-realismo" terrível.
Numa barraca improvisada com "dois cobertores e uma velha lona", em Lisboa, uma mãe ainda jovem, com 23 anos, mas doente ( icterícia) e três filhos menores, um de seis anos, outro de quatro e um outro, ao colo que "não aparenta a idade que tem: dezoito meses". Mais a notícia de um outro filho de nove meses, o Zé, "morto há dias".
O retrato é de uma carência absoluta: de saúde, de recursos económicos e "sociais". A notícia aparece porque uma vizinha no bairro, condoeu-se da sorte das três crianças e "telefonou-nos", ou seja ao jornal que dá a notícia, para " que lançássemos um apelo no sentido de minorar a infelicidade dos três garotos, antes que lhes suceda o mesmo que ao irmãozinho mais novo."
A esperança do jornal era que "algum instituto nos oiça e recolha as três crianças".
Na notícia diz que o jornal falou com a mãe, perguntando-lhe se se importava que alguém tomasse conta dos filhos. "Justina Lopes pôs-se a chorar e não nos respondeu. E porque insistimos, torneando a pergunta, disse-nos por fim: ´se for para bem deles`..."
O redactor ainda escrevia: " Os três garotos assistiam à conversa, imóveis e silenciosos. Atrás de nós, na sombra acolhedora do pinhal, casais de burgueses anafados, descansavam pachorrentamente, fazendo a digestão."
A história de Justina era ainda dramática: tinha vindo da Mealhada há meses, com um pai doente e um irmão paralítico, todos pobres. O jornal concluía que era "um caso de assistência social."
"Haja alguém que ajude", concluia a notícia, depois de citar a pessoa que telefonou, preocupada com as crianças: "os adultos que se governem...mas é pelas crianças".
O jornalista dá então a sua opinião pessoal, de pensamento diferente desse: "Há adultos que não sabem governar-se..."
Passados 40 anos, o Público de quarta-feira deu conta de uma outra notícia: a de uma condenação do Estado português por causa de uma decisão de tribunais portugueses sobre uma adopção de uma criança contra a vontade dos país, toxicodependentes. A decisão do TEDH critica a atitude dos tribunais portugueses em proibir os pais da criança de ver o filho durante mais de dois anos, os suficientes para se discutir a adopção, decretada por "inexistência de laços familiares entre a criança e os pais".
A advogada desses pais refere ainda na notícia que "os tribunais confiam quase cegamente em instituições como a Segurança Social" e que a decisão dos tribunais foi sempre condicionada por um parecer de uma técnica desse serviço que entendeu que a criança deveria ser encaminhada para a adopção.

Que dizer destas duas notícias? Na primeira, a sociedade portuguesa da época, aparece de corpo inteiro, para quem souber ler. A Segurança Social, incipiente então, não resolvia estes casos por incumbência específica. Tal era deixado "à sociedade civil", às organizações de caridade, aos vizinhos, aos que se "condoíam". Ou seja, a uma solidariedade mais efectiva, real e humana.
Na segunda aparece um sector, o dos serviços, que tomaram conta das pessoas em aspectos tão essenciais como o poder paternal.
No primeiro caso, a miséria social é de tal modo absoluta que comoveu alguém da vizinhança daqueles protagonistas que tomou a iniciativa de telefonar a um jornal para que o órgão de comunicação social desempenhasse um papel que em princípio não lhe competiria. Dantes era assim. Havia até um jornal que tinha uma secção intitulada "todo o homem é meu irmão".
Agora, não. Os jornais, hoje em dia, não se sentem vocacionados para ajudar na miséria social. Deixam tal papel para as "instituições" e relatam casos em que as mesmas intervém.
A Segurança Social em Portugal evoluiu para uma protecção social mais alargada de modo que casos como aquele de 1971 não seriam fáceis de encontrar, sem que alguém não tivesse ainda alertado essa mesma Segurança Social.
A evolução é evidentemente positiva: dar algum conforto económico a quem nada tem e apenas herdou miséria, é um dever social e cristão.
Mas...reportando-nos a 1971, o que faria nesse caso a Segurança Social de hoje? É fácil de responder:
Em primeiro lugar teria retirado os filhos àquela mãe. "Sinaliza-los-ia" em primeiro lugar a uma Comissão de Crianças e Jovens" que abriria um processo em que participariam "técnicas de serviço social", que elaborariam relatórios que enviariam ao tribunal de menores e família a fim de o juiz ratificar a decisão de retirada das crianças à mãe.
Depois, seguir-se-ia o calvário habitual para mães destas: sem recursos, meios ou capacidade para os obter, restar-lhe-ia gritar.
Gritar, como na pintura de Münch...
Sinceramente, entre 1971 e 2012, algo aconteceu na sociedade portuguesa que paradoxalmente nos tornou piores do que éramos. E não falo do progresso económico, mesmo esse uma quimera para muitos.