Manuel Pina, no pequeno artigo de opinião que ontem publicou no JN e a que tive acesso depois de ler o artigo de opinião de Pedro Lomba no Público de hoje, coloca o dedo numa ferida pustulenta e Pedro Lomba carrega-lhe ainda mais ao escrever:
"Tal como está, o CEJ não está a formar magistrados mas a transmitir aos recém-chegados um espírito de corpo que, ainda por cima, está longe de ser o adequado. E por isso trata os futuros magistrados como se fossem uma confraria homogénea, avaliando-os com tabelas que não distinguem os melhores e piores e atirando areia para os percalços que vão surgindo. Os resultados estão à vista."
Ambos os textos partem de pressupostos, a meu ver errados, entre os quais o de perceberem o CEJ como uma escola de formação tipo clássico, tipo faculdade, tipo curso universitário em pós-graduação. Ambos se referem a "testes", salas de aula , avaliação.
Manuel Pina até cita o caso singular de uma auditora que terá sido corrida do curso por comportamento anti-social ao espírito de casta, tentando demonstrar que o desembargador que a avaliou se determinou por critérios subjectivos em consonância com esse espírito.
Não pretendo aqui dizer que Manuel Pina se enganou na análise, subjectiva também, do caso concreto. Pretendo apenas referir que esse caso pode muito bem ser exemplar do modo como se avalia a competência e adequação para a magistratura.
O ponto em que ambos os cronistas e muitos comentadores emperram é sempre o mesmo: o CEJ enquanto escola de formação, digamos assim, escolástica. Vêem o CEJ como uma extensão das faculdades por onde passaram e no caso de Lomba por onde estão. Portanto, a noção de teste e avaliação tomam imediatamente uma conotação bem precisa e sem qualquer subtileza transcendental. A metalinguagem, neste caso, é assumida como referência a um fenómeno que conhecem e replicam noutros campos que desconhecem ou que julgam conhecer através de amigos ou mesmo familiares.
Ora o CEJ não é isso e se o passou a ser está completamente errado na função de formação. Julgo no entanto que não será tanto assim.
O caso do tal teste americano em que os auditores "copiaram" parece um facto indesmentível para fundamentar a indignação mais radical ( Marinho e Pinto e outros) e a mais soft e condescendente ( a directora do CEJ e outros).
Porém, entenda-se a formação de magistrados do seguinte modo:
A selecção inicial, com testes de exclusão mais do que de admissão, é decisiva para a entrada na "escola". Esses testes, difíceis e muito selectivos são realizados em moldes mais ou menos clássicos, numa sala em que se realizam individualmente. Porém, como se permite a consulta de elementos, nada impede que duas pessoas conhecidas troquem conhecimentos in loco, discretamente. Aconteceu alguma vez uma coisa destas? É perguntar a certos parzinhos que entraram no CEJ em conjunto, mas... será tal coisa censurável neste contexto? Isso determinará logo a inaptidão para a magistratura? Se alguém assim pense, que pense duas vezes e abandone o pensamento.
"Escola", portanto, vai entre aspas porque o CEJ foi copiado no seu modelo primevo de 1981, da "
École nationale de la magistrature" francesa e que inicialmente, em 1958, se chamava Centre nationale d´études judiciaires. Lá também há testes, mas o essencial da formação não será assim.
No início dos anos oitenta, em Portugal, alguém se lembrou do modelo francês, adaptou-o e pô-lo a funcionar no Limoeiro, sob a direcção de Laborinho Lúcio que aí realizou uma obra a todos os títulos notável e extraordinária, acompanhado por outros magistrados do "antigamente".
Laborinho, segundo se depreende das suas intervenções e cursos de formação, não entendia o CEJ como uma escola no sentido clássico do termo, como aliás a mesma não era em França. Era muito mais que isso mas de muito difícil realização em escassos 10 meses de formação inicial, com presença no Limoeiro a frequentar autênticas aulas dadas por professores ad hoc, geralmente magistrados de função que praticavam com os futuros magistrados os "tools of the trade", os instrumentos legais de trabalho na função e tentavam passar algumas noções de comportamento em público nas salas de audiência. Pouca prática, porque esta adquire-se...praticando. Algumas noções básicas fundamentadas no conceito de que "o que vem de trás toca-se para a frente". Havia por isso alguns manuais, por exemplo para "delegado do procurador da República", do "antigamente" e quando nem havia escola alguma de formação de magistrados a não ser a prática nos tribunais, junto dos juízes.
Havia testes, para além dos iniciais, em continuidade na formação e durante os 10 meses de frequência do CEJ? Havia. E como eram esses testes nos anos oitenta? Eram trabalhos individuais, supostamente elaborados individualmente, baseados em casos práticos distribuídos e tirados de processos reais que tinham corrido termos nos tribunais. Esses trabalhos poderiam ser efectuados em conjunto, com discussão em grupo ou com cópia do trabalho alheio, por cada magistrado que o entendesse. No limite, até poderia ser copiado do processo original que fosse possível consultar na respectiva comarca. E isso o que valia em termos de definição de carácter, personalidade para a função ou adequação ao estatuto? Pouco ou muito, conforme o valor e intensidade da cópia.
Esses trabalhos eram apresentados individualmente e vistos pelo magistrado formador que lhes conferia uma classificação de graduação. Nas aulas práticas eram apreciados eventualmente pelos formadores que inquiriam os auditores, individualmente, acerca das soluções propostas e qualidade ou mérito atingidos. Esse era um dos modos de aferir a conformidade do teste individual com o conhecimento individualizado.
A avaliação do mérito intelectual dos auditores era feita desse modo: através desses trabalhos individuais e pela inquirição ou qualidade de intervenção nas "aulas" acerca das diversas matérias.
Tal método era mais ou menos eficaz para se graduar o mérito académico do auditor, geralmente coincidente com o que trazido da faculdade.
Seria eficaz para avaliar ou determinar a adequação do auditor à função de magistrado? Não, não e não. Vai em triplicado que é para realçar melhor. E essa avaliação pura e simplesmente não se fazia com critério definido. Não se faziam testes de personalidade ou psicológicos para excluir auditores que se revelavam, segundo um entendimento comum, manifestamente desadequados. Assim, os sinais adquiridos para essa selecção subjectiva poderiam ser vários: uma auditora de chapéu permanentemente extravagante; um auditor mal-vestido; uma auditora com laivos de anormal e por aí fora, numa tentativa de definição de um perfil nunca alcançado.
Essa busca permanente do perfil, graal supremo na definição do magistrado ideal, continua até hoje. Ninguém o definiu porque não é definível ou se o for, é-o apenas por arquétipos do género dos agora apontados: um auditor que copia um teste não pode ser magistrado porque isso é uma fraude. Logo, quem defrauda assim de modo tão primário não pode julgar. O mesmo se aplicaria a um auditor apanhado a roubar num supermercado. É um conceito básico e definidor de personalidade inadequada à magistratura.
À míngua de critérios mais precisos e convenientes adapta-se a ideia geral de senso comum: um magistrado deve ser sério e honesto e enganar deliberadamente numa sala de aula um professor é sinal inequívoco de que não o é. Mesmo que tal facto não seja qua tale, passa a ser ( principalmente para quem é professor ou interiorizou a noção de sala de aula) porque apazigua a consciência de quem pensa no assunto e encontra a solução evidente e indiscutível.
Se colocarem a esse julgador ocasional e ad hoc a hipótese do magistrado em formação que ultrapassa constantemente limites de velocidade, na estrada, aí a dúvida instala-se: já foi apanhado alguma vez? Se foi, torna-se imperdoável e sinal inequívoco de inadaptação, pelo senso comum mais primário. Se não foi, aceita-se o facto como não tendo ocorrido.
Se a hipótese for por exemplo a de uma pequena fuga ao fisco, por exemplo na antiga sisa de compra de casa, o caso ainda será mais subtil: como não é político nem sequer será notícia de jornal. Se a situação se envolver com amizades espúrias com pessoas de alto gabarito político e com manifestações claras em nomeações futuras ou presentes então é que a ética soçobra de todo em todo...
No entanto é isso que estes comentadores pretendem: avaliar a adequação a uma profissão através de testes escritos segundo um arquétipo que conhecem e daí extrapolar para análises psicológicas de inclusão ou exclusão, verificando comportamentos anómalos na realização desses testes. O fenómeno de "copianço" nestes casos assume a relevância que se atribui à vigarice e à fraude, justamente designativos, nesses arquétipos.
Em primeiro lugar empobrecem a análise ao reduzirem o campo de apreciação de critérios. Um copianço é uma fraude, ponto final e parágrafo para dizer logo a seguir que um magistrado não pode ter carácter de copiador. Ora um magistrado pode ter esse carácter, até porque o tem mesmo. Copia sempre. Olha para o lado, para o livro que outros fizeram e pensaram. Copia decisões alheias porque assim tem de ser. Copia e adapta as decisões de outros, publicadas para isso mesmo.
Portanto, a questão fundamental continua a ser a de se encarar o CEJ como uma escola onde se ensina do mesmo modo que numa faculdade e se avaliam alunos de idêntica maneira.
Como alguém disse recentemente ( o PGR, justamente), o que caracteriza fundamentalmente o magistrado é " a seriedade, o bom senso e o equilíbrio".
Estes comentadores ligam directamente o caso do "copianço" à seriedade, como sintoma da sua ausência. Ora tal não se afigura correcto, a meu ver, tendo em conta que a avaliação da tal seriedade pode e deve ser efectuada de outro modo mais eficaz. Há testes para isso, mas são de outra natureza. Há modos de perceber se alguém é sério e honesto, mas os critérios de avaliação são muito elusivos.
A seriedade e honestidade são traços de carácter que se podem manifestar em diversas circunstâncias. Normalmente, no caso dos magistrados, surgem nas suas decisões e modo de as fundamentar ou despachar. No limite, um magistrado "desonesto" na sua vida íntima e particular pode muito bem não deixar interferir essas característicos idiossincráticas nas decisões processuais. As fundamentações exigidas nas decisões podem acautelar decisões "desonestas" até porque o magistrado "desonesto" teme muito mais que os outros, o inspector honesto e prefere não dar motivos para se lhe mostrar a desonestidade.
A inteligência de alguns magistrados, experimentados nas lides, pode até permitir-lhes serem profundamente desonestos ao mesmo tempo que alardeiam a seriedade como valor intrínseco ao seu ser mais profundo...e sem dar o flanco da evidência da vigarice porque "as sabem fazer". Há casos disso? Então não há?! Querem exemplos recentes e mediáticos? É só pensar neles...
PS. Segundo se lê no
InVerbis, a pessoa concreta citada na crónica de Manuel Pina será filha deste. Se for verdade, a crónica é uma pequena desonestidade. Mas mais grave do que copiar num teste do CEJ, assim da forma como o terá sido.
PS2. Ainda no
InVerbis, um comentário de Artur merece destaque:
"O CEJ é essencialmente dirigido por magistrados dos tribunais superiores. Esses magistrados, docentes e dirigentes do CEJ, relativamente à questão A tomaram, de acordo com os factos e o direito aplicável, a decisão B, por esta ser de justiça. No entanto, ante posterior ingerência de personalidades estranhas ao processo e às parte do procedimento administrativo (Bastonário da Ordem dos Advogados, Presidente Jorge Sampaio, Ministro da Justiça, Procurador-Geral da República, etc.) e à pressão da opinião pública, encabeçada pelos jornalistas, os mesmo magistrados, dirigentes e docentes do CEJ, no mesmo caso A, em face dos mesmos factos e do mesmo direito aplicável, revogaram a decisão B, que tinham por ajustada, e tomaram a decisão C, totalmente diferente da primeira decisão, B. O exemplo de falta de isenção, independência e de verdade assim dado aos futuros magistrados visados pelas decisões contraditórias, mudadas para agradar a personalidade influentes e à opinião pública pode não ser considerado o melhor. Na verdade, há já quem considere tal exemplo como muito pior do que aquele que resultava de alguns alunos terem alegadamente copiado (coisa que nem estava como não está provada, mas apenas meramente indiciada). Resta a esperança de que os futuros juízes visados pela decisão contraditória do CEJ venham a decidir nos tribunais um pouco melhor e com fundamentação mais racional, isenta, imparcial e verdadeira, do que os seus instrutores fizeram, relativamente a eles, no CEJ. "