O Público de hoje dá relevo a um inquérito público e europeu, relativo "às atitudes e valores sociais e políticos europeus."
Sobre os tribunais portugueses o resultado do inquérito não podia ser mais demolidor da essência do que deve ser esse órgão de soberania: "
cerca de 80% dos portugueses consideram que as decisões dos tribunais são influenciadas por pressões políticas" e ainda que tal se acentuou a partir do processo Casa Pia.
Este resultado pode ser um sofisma grave. Parte de um erro essencial de análise que a responsável portuguesa do grupo de análise não dá conta nem parece perceber a essência.
Anália Torres, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa não distingue tribunais, de órgãos de justiça, de polícia, de magistraturas com incumbências específicas e por isso não segmenta responsabilidades específicas.
Fica tudo num caldeirão de confusão, sem distinção de papéis relevantes que a opinião pública também não parece entender e os media muito menos pretendem esclarecer. Mas também pode não ser e afinal o erro gnoseológico e de antonomásia em que os tribunais são tomados pelo todo do poder judicial, onde se incluem outros órgãos auxiliares de justiça, serem efectiva e justamente visados nos casos mais mediáticos e que conferem por isso mesmo a visibilidade emblemática e representativa da tendência.
Os tribunais são órgãos de justiça que administram a mesma em nome do povo e são titulados pelos juízes.
Portanto, quando se refere neste inquérito e em abstracto a categoria "tribunais" não são obviamente apenas estes órgãos que são contemplados com a maior desgraça que atinge a independência que deveria ser apanágio dos mesmos. Na categoria "tribunais" ficam irremediavelmente incluídas outras instituições, mormente a polícia e o ministério público que não são tribunais, tout court e deveriam ser distintos nessa matéria. E os tribunais são como as sentenças: cada cabeça terá a sua, sendo isso que contribui para a confusão.
Será que os portugueses, no inquérito em causa, especificam os juízes que são a parte pessoal dos tribunais, como corruptos e com falta de independência face aos políticos que julgam e se deixam influenciar pelos mesmos? Não me parece.
Será que os portugueses acham que os juízes que integram tribunais ou decidem questões nos processos, actuam em conformidade com as pressões políticas que sofrem ou se deixam permear por elas? Já tenho dúvidas.
Vejamos. Se perguntarem a cada um dos inquiridos, em concreto, se acha que os juízes do tribunal que julgou o processo Casa Pia, se deixou influenciar pelo poder político, avulta o caso de Paulo Pedroso. E nesse caso, o que dizer? Que sim, que foram os tribunais a pecar por falta de independência? O que dizer quando é um dos arguidos mais importantes quem o afirma e os factos podem sustentar tal tese? E neste caso concreto, o mal que dois ou três magistrados judiciais fizeram à imagem da justiça portuguesa é irreparável. O que fica de tudo é um favorecimento objectivo de um indivíduo por ser político e de um partido que se empenhou institucionalmente a elaborar uma teoria cabalística que nos conduziu a este resultado que nos coloca no topo da tabela dos tribunais menos independentes e com imagem mais degradada.
Será que se pode dizer, neste caso concreto, que o tribunal que se ocupou deste caso era mais independente que os Plenários da Boa-Hora que julgavam crimes políticos? A resposta foi dada nas escadas da Assembleia da República, pelos deputados correlegionários do indivíduo que obviamente não era apenas um indivíduo mas um partido em peso que estava em causa. E nessa causa concreta, os tribunais portugueses , por antonomásia inevitável, soçobraram na dignidade exigível e perceptível pela maioria dos inquiridos e eventualmente da população em geral.
Mas...e o os demais casos que envolveram políticos e ficaram em águas de bacalhau, ambiente de pesca do jornalismo português?
Vejamos ainda. No caso Face Oculta, o Correio da Manhã de hoje escreve que
"procurador protegeu Sócrates". Esta afirmação assim produzida directamente na primeira página é a maior ignomínia que pode ser imputada a quem tem o estrito dever de ser imparcial, isento e autónomo em relação a outros poderes. Objectivamente a protecção ocorreu. Mas será que integra um procedimento subjectivamente censurável? Arriscar esse entendimento é avançar e parquear na intenção subjectiva de quem a tomou. O jornal permite tal interpretação e por isso, a afirmação é também, logicamente, a notícia de um crime de que é suspeito o PGR que está: o de denegação de justiça. Este crime enuncia-se assim, no artº 369º do Código Penal, como de prevariação e denegação de justiça:
1 - O funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar acto no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 120 dias.
2 - Se o facto for praticado com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém, o funcionário é punido com pena de prisão até 5 anos. Alguém, alguma vez afirmou publicamente que uma actuação do PGR como a indiciada e denunciada agora abertamente pelo Correio da Manhã integra indiciariamente a prática desse crime? Alguém do STJ, mormente do poder judicial, o afirmou claramente e sem margem para dúvidas que o PGR que está, deveria ser sujeito por esse facto e perante o princípio geral da igualdade da lei para todos, a um inquérito criminal, dirigido por um juiz do STJ, sorteado, para averiguar se cometeu esse crime? É que ainda vai a tempo porque tal crime ainda não prescreveu. Alguém do poder judicial assume a responsabilidade de instaurar tal inquérito?
Há aqui um problema acrescido: o PGR não esteve sozinho nessa actuação duvidosa. Teve a companhia do mais alto magistrado da nação, a seguir ao P.R. o próprio presidente do STJ, como juiz singular e representando obviamente o poder judicial, num tribunal de instrução criminal privativo do primeiro-ministro, uma solução constitucionalmente aberrante e que ninguém ainda questionou.
As perguntas são retóricas porque presumivelmente e atendendo ao costume dos brandos costumes, ninguém o vai fazer. Por vários motivos, incluindo o de os juízes do STJ poderem entender que não há crime algum indiciado, por a decisão respectiva daqueles magistrados se conter dentro dos limites de julgamento admissível a um magistrado, desde que fundamentados nos respectivos despachos.
Tal entendimento é sempre subjectivo mas objectivável e passível de análise em inquérito, porque as motivações podem sempre ser as melhores mas devem ser coerentes com os factos conhecidos e muito mais se tal for do domínio do escândalo público, como efectivamente é e o jornal Correio da Manhã dá conta.
Não é ou não devia ser inconsequente que um jornal nacional publique na primeira página que o procurador geral de um país protegeu o primeiro-ministro em sede de investigação criminal e tal fique sem qualquer reacção por parte dos responsáveis pelo poder judicial de investigação, no caso os juízes do STJ que se encontram assim perante mais um caso em que o mesmo poder judicial, mesmo que não sejam os tribunais, ficam na berlinda da opinião pública. Não é o primeiro jornal a fazê-lo porque o Sol também já o deu a entender.
O que deveria fazer um poder judicial independente e autónomo, num caso destes? Investigar o facto, até às últimas consequências. Tal implicaria um inquérito à actuação daqueles dois altos magistrados, evidentemente e sem preconceitos ou prè-juizos. Se há casos em que a presunção de inocência deveria ser uma regra incontornável seria este. E as consequências desse inquérito seriam no início, obviamente danosas para a imagem dos mesmos, atendendo aos media que temos. Só por isso e não porque um inquérito dessa naturesa devesse ter como efeito tal prejuízo pessoal. Num país civilizado como a França, o procurador geral de Paris ( Phillipe Courroye) é suspeito de favorecer o poder político do presidente que está, por ser amigo do mesmo. No caso Bettencourt deixou marinar o inquérito em sede administrativa, sem o submeter à apreciação do juiz de instrução ( equivalente ao MºPº de cá, para esse efeito) e retirando assim o gás explosivo de uma investigação com meios de indagação que não são administrativos. As suspeitas são menos graves que as que que são apontadas pelo Correio da Manhã e ainda assim são escritas em revistas, com factos que o denotam.
Mas se no fim as conclusões fossem no sentido de clarificar a respectiva actuação e ilibar de actuações menos correctas tais magistrados, o poder judicial sairia dignificado e ganharia o respeito da maioria das pessoas.
Seria provavelmente a primeira vez que a opinião pública entenderia que ninguém efectivamente se encontra acima da lei e seria esta a ocasião perfeita para o poder judicial reganhar a confiança dos cidadãos que como vemos é quase nula.
Agora, responda quem souber: esse objectivo não é o maior desafio que temos pela frente no poder judicial? Não é essa, exactamente, a imagem que está deteriorada na opinião pública que temos?
Então, de que estão à espera os magistrados do STJ, para limpar a imagem dos "tribunais" portugueses e demonstrar que são efectivamente independentes e autónomos e que o poder que está é apenas um poder que deriva do povo em nome do qual se aplica justiça?