segunda-feira, março 26, 2012

A politização da cultura

























TVI24:

A viúva de José Afonso (Zeca Afonso) mostrou-se indignada, numa nota enviada à agência Lusa, com o uso, por parte do PSD, de versos da autoria do cantor no congresso do partido, que decorreu este fim-de-semana.

«Quero protestar contra o uso, pelo PSD, no seu Congresso deste fim de semana, de versos de José Afonso», refere Zélia Afonso numa nota escrita enviada à Lusa.

A viúva do autor de temas como «O que faz falta» e «Grândola Vila Morena» refere que fica «satisfeita» quando vê «a obra musical do Zeca a ser estudada e até interpretada, por exemplo, por jovens que nem sequer o conheceram em vida» e considera que «isso significa que a sua mensagem artística e humana permanece viva e actual».

«Penso também que a sua obra ultrapassa fronteiras, por exemplo partidárias. Mas a vida e as suas canções não só nunca se cruzaram com o PPD, ou com PSD que se lhe seguiu, como estiveram, no tempo histórico em que coincidiram, em lados opostos da barreira», refere.

O artista José Afonso, a par da sua genialidade criativa na música, foi um activista de extrema- esquerda que defendia abertamente o "poder popular", a revolução socialista com laivos libertários, ( mas nem tanto assim porque a sua vida pessoal parece ser um poço de desgraças contraditórias) e apodava abertamente de "fascistas" os que defendiam aquilo que designava de burguesia e a produção capitalista nos moldes da economia ocidental.
As suas letras, panfletárias e revolucionárias ( ler na imagem da esquerda, tirada da capa interior do disco Enquanto há força, de 1977), nos discos que publicou imediatamente após o 25 de Abril de 1974, chegam para comprovar essa opção política que passava pela revolução armada e a deposição da tal "burguesia".
A par de José Afonso havia uma mão cheia de outros artistas portugueses, igualmente com valor e que podem ser vistos na foto acima, à direita, tirada de uma Flama de 1974 ( num congresso da Luar do revolucionário Palma Inácio, antes de este se entregar de alma e coração à burguesia e à maçonaria de Mário Soares). Sérgio Godinho, Vitorino, José Mário Branco, Fausto e outros partilhavam o mesmo entendimento político e militância activa traduzida nos seus discos.
A par disso, a música de José Afonso é simplesmente genial. Tenho andado ultimamente a ouvir outra vez todos os discos de José Afonso, em lp ( formato melhor que o cd porque de maior qualidade) e reafirmo: José Afonso é um vulto enorme da nossa cultura artística e musical. Ler a sua biografia ( publicada com ilustrações por Joaquim Vieira, num livro da Bertrand, já com alguns anos) é recolher um manancial de informações sobre o que se deve "contar como foi" Portugal dos anos cinquenta e sessenta.
Esse aspecto artístico e musical de José Afonso ( e dos outros...) não pertence à família, seja ela política ou pessoal. Pertence ao património comum de todos nós, assim como os Beatles e John Lennon em particular ( "Power to the people") pertencem a toda a comunidade que os escuta e aprecia, independentemente das idiossincrasias políticas dos mesmos.

A viúva de José Afonso pode ter direitos autorais a receber e se assim for nada a dizer. Mas não tem o direito de proibir ou censurar a utilização da música do artista por quem não partilha as ideias políticas do mesmo.
Não entender isto releva de outra faceta: a democracia popular, para estas pessoas, era muito restrita...e portanto já se sabe o que aconteceria se tivesse sido implantada.