Bem escrita, bem contada e exemplar história sobre as idiossincrasias pátrias. No jornal i de hoje. Poderia ter sido há 50 anos que a história se passou. Assim:
Três irmãs de uma aldeia do concelho da Guarda desentenderam-se por causa da campa da mãe e o caso acabou no Tribunal da Relação de Coimbra. Maria Augusta morreu em França - onde morava com uma das filhas, Lúcia -, em Novembro de 2004. O corpo foi trasladado para Portugal e outra das filhas, Judite, que mora na aldeia do Marmeleiro, decidiu comprar o direito de uso de uma sepultura perpétua no cemitério da junta de freguesia.
Sendo dona do talhão, Judite terá impedido as duas irmãs - que vivem em França - de prestarem culto à falecida e de se aproximarem da campa. Lúcia e Piedade deram então entrada, no ano passado, com um processo no tribunal da Guarda, alegando que Judite as vinha "impedindo de colocar flores e outros objectos no túmulo da mãe, de aí rezarem e de se aproximarem do talhão". Em Janeiro, o tribunal deu razão a Judite, porque, não havendo legislação para regular esta matéria, tratar-se-ia de uma questão de direito natural e, como tal, o problema só poderia ser resolvido mediante um entendimento entre as três irmãs. Na ausência de acordo, deveria prevalecer a vontade da dona da campa.
Inconformadas, as duas irmãs recorreram para a Relação de Coimbra que, esta semana, determinou que Lúcia e Piedade podem visitar a sepultura e depositar flores na campa "de tempos a tempos", mas sem vasos.
Os cemitérios, considerou o juiz, são públicos. Por isso, diz o acórdão, "não se vê fundamento para que a ré possa impedir as irmãs, ou qualquer outra pessoa, de se aproximarem do talhão" e aí rezarem. Além disso, acrescenta o tribunal, Lúcia e Piedade são filhas da falecida e a relação de parentesco "não cessa com a morte". "As filhas não deixaram de o ser quando a mãe faleceu", escreveu o juiz. Por outro lado, a Constituição determina que toda a pessoa tem direito a "protecção legal contra quaisquer formas de discriminação". E o Código Civil protege os indivíduos "de qualquer ofensa à sua personalidade física e moral". O que engloba "os bens inerentes à materialidade e à espiritualidade". O acórdão refere ainda que a "personalidade de uma pessoa falecida continua a viver [...] neste mundo na memória [...] de um maior ou menor círculo de pessoas". Posto isto, as duas irmãs têm direito a manter "uma relação com os familiares falecidos" e essa "relação pode concretizar-se de diversas formas, algumas das quais passam pela proximidade física da sepultura" onde está o falecido e aí rezar ou "estar com aquele que já não se pode abraçar". O juiz recorda também que é comum, na nossa cultura, a colocação de flores e lápides nos túmulos. Por isso, as irmãs teriam direito a fazê-lo.
Mas há um senão. Apesar de o cemitério ser público, a campa é de Judite, que "tem poderes exclusivos de fruição da sepultura". Perante a colisão de direitos, deve prevalecer o direito superior. E entre a propriedade de uma sepultura e o direito ao culto a um falecido, deve prevalecer o segundo. "Mas não de forma absoluta", disse o juiz. Assim, as duas irmãs poderão praticar "actos que tiverem repercussões efémeras na sepultura". Lúcia e Piedade podem, então, pôr flores na campa da mãe "de tempos a tempos", mas não poderão "colocar lápides ou vasos de flores", porque isso já choca com a propriedade da dona da campa. E as irmãs vão ter mesmo de se contentar com o acórdão: a decisão não é passível de recurso para o Supremo.
Três irmãs de uma aldeia do concelho da Guarda desentenderam-se por causa da campa da mãe e o caso acabou no Tribunal da Relação de Coimbra. Maria Augusta morreu em França - onde morava com uma das filhas, Lúcia -, em Novembro de 2004. O corpo foi trasladado para Portugal e outra das filhas, Judite, que mora na aldeia do Marmeleiro, decidiu comprar o direito de uso de uma sepultura perpétua no cemitério da junta de freguesia.
Sendo dona do talhão, Judite terá impedido as duas irmãs - que vivem em França - de prestarem culto à falecida e de se aproximarem da campa. Lúcia e Piedade deram então entrada, no ano passado, com um processo no tribunal da Guarda, alegando que Judite as vinha "impedindo de colocar flores e outros objectos no túmulo da mãe, de aí rezarem e de se aproximarem do talhão". Em Janeiro, o tribunal deu razão a Judite, porque, não havendo legislação para regular esta matéria, tratar-se-ia de uma questão de direito natural e, como tal, o problema só poderia ser resolvido mediante um entendimento entre as três irmãs. Na ausência de acordo, deveria prevalecer a vontade da dona da campa.
Inconformadas, as duas irmãs recorreram para a Relação de Coimbra que, esta semana, determinou que Lúcia e Piedade podem visitar a sepultura e depositar flores na campa "de tempos a tempos", mas sem vasos.
Os cemitérios, considerou o juiz, são públicos. Por isso, diz o acórdão, "não se vê fundamento para que a ré possa impedir as irmãs, ou qualquer outra pessoa, de se aproximarem do talhão" e aí rezarem. Além disso, acrescenta o tribunal, Lúcia e Piedade são filhas da falecida e a relação de parentesco "não cessa com a morte". "As filhas não deixaram de o ser quando a mãe faleceu", escreveu o juiz. Por outro lado, a Constituição determina que toda a pessoa tem direito a "protecção legal contra quaisquer formas de discriminação". E o Código Civil protege os indivíduos "de qualquer ofensa à sua personalidade física e moral". O que engloba "os bens inerentes à materialidade e à espiritualidade". O acórdão refere ainda que a "personalidade de uma pessoa falecida continua a viver [...] neste mundo na memória [...] de um maior ou menor círculo de pessoas". Posto isto, as duas irmãs têm direito a manter "uma relação com os familiares falecidos" e essa "relação pode concretizar-se de diversas formas, algumas das quais passam pela proximidade física da sepultura" onde está o falecido e aí rezar ou "estar com aquele que já não se pode abraçar". O juiz recorda também que é comum, na nossa cultura, a colocação de flores e lápides nos túmulos. Por isso, as irmãs teriam direito a fazê-lo.
Mas há um senão. Apesar de o cemitério ser público, a campa é de Judite, que "tem poderes exclusivos de fruição da sepultura". Perante a colisão de direitos, deve prevalecer o direito superior. E entre a propriedade de uma sepultura e o direito ao culto a um falecido, deve prevalecer o segundo. "Mas não de forma absoluta", disse o juiz. Assim, as duas irmãs poderão praticar "actos que tiverem repercussões efémeras na sepultura". Lúcia e Piedade podem, então, pôr flores na campa da mãe "de tempos a tempos", mas não poderão "colocar lápides ou vasos de flores", porque isso já choca com a propriedade da dona da campa. E as irmãs vão ter mesmo de se contentar com o acórdão: a decisão não é passível de recurso para o Supremo.
8 comentários:
Um post à la Helder Fráguas.
Deixe-me adivinhar... Os Juízes seguiram um parecer dos autores do Blasfémias.
diriam na minha juventude neste país de 'brandos costumes'
«lembes com uma sacholada pra cabeça (cornos como variante )» e zás
É muito interessante esta questão e existe precisamente porque a Revolução Francesa não conseguiu laicizar tudo.
Os cemitérios não são locais absolutamente laicos onde se aplique uma lei jacobina de direitos de propriedade, sem mais.
A crença não se laiciza e é por este motivo que a decisão tinha de contentar todos.
Já tinha feito até um quiz acerca desta matéria. Os ateus teimam que os cemitérios são espaços públicos, uma vez que conseguiram impedir os sagrados, nos adros das igrejas.
Mas não é bem assim e aqui percebe-se porquê.
Por este motivo eles também foram obrigados a condenar aquela cena de porcaria nas campas do cemitério judaico, por muito abandonado que estivesse.
E não foi invocando racismo ou tretas de anti-semitismo- foi porque para os judeus o cemitério é mesmo terreno sagrado e a lei não podia abrir excepção para eles, mas integrá-la na mesmíssima protecção de culto e fé que existe para todos.
«O que engloba "os bens inerentes à materialidade e à espiritualidade". O acórdão refere ainda que a "personalidade de uma pessoa falecida continua a viver [...] neste mundo na memória [...] de um maior ou menor círculo de pessoas". Posto isto, as duas irmãs têm direito a manter "uma relação com os familiares falecidos" »
Está aqui. Vou guardar, José, porque isto é muito curioso e ainda mais quando entra a "sacralidade da propriedade" em antagonismo com a sacralidade da espiritualidade.
E a moradora do jazigo não tem "uma palavra a dizer"?
Imaginemos que a senhora está viva, morando numa casa de que a Judite é proprietária. - Poderia a Judite proibi-la de receber as irmãs, só porque a casa é dela?
Mesmo que seja assim, há uma diferença entre os casos. Neste último, a senhora teria voz, e poderia alterar a situação, o que infelizmente não acontece na "última morada".
O mais interessante é o "jurídico", o esforço de adaptar algo indefinido e sentido pelo senso comum, à realidade jurídica.
Inventaram, como fazem sempre, uma vez que o "jurídico" permite e estimula essa invenção.
Daí a "aldrabice secante" que não me canso de glosar.
Tanto faz assim ou assado desde que fundamentado juridicamente. E como a última instância tem a última palavra, fica sempre assim: vale o que eles dizem. Mesmo que digam disparates.
O que não me parece ser o caso, diga-se.
Pois é, José. Mas, a verdade é que neste caso não conseguiram passar totalmente por cima do que ultrapassa a lei- os costumes.
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